A Ética do Trabalho

[Baseado numa história real]

- Trabalhador 6784! A sua presença é requisitada na Administração de Pessoal!

Durante um breve momento, a atividade mecânica na linha de montagem foi percorrida por uma onda de desassossego. Os olhos fixos na execução das tarefas repetitivas, a montagem de veículos de combate que seriam usados na Frente Ocidental, desviaram-se brevemente do trajeto definido pelos estudiosos da eficácia laboral. Mãos tremeram ao apertar parafusos e fixar braçadeiras. O alto-falante preso à parede não deveria soar fora dos horários predeterminados. Que o houvesse feito, era um mau sinal. E a ordem dada reforçava este prenúncio.

Ninguém era chamado à Administração de Pessoal, no meio do expediente, para receber parabéns.

O Trabalhador 6784, um homem grande e vermelho, de cerca de 40 anos, parou de alimentar a esteira de produção e fez um sinal para que um de seus companheiros o substituísse no posto. Em seguida, limpou as mãos sujas de graxa com uma estopa, ajeitou o macacão cheio de manchas de óleo, e começou a subir as escadas de ferro que levavam à Administração. Um segurança no alto da escada abriu a porta de madeira com uma janela de vidro e fez sinal para que ele passasse.

- Você está encrencado, 6784 - murmurou, antes de fechar a porta. Se 6784 ouviu o comentário, achou por bem não retrucar. Seguiu calmamente pelo corredor acarpetado de azul, até a sala com porta de vidro no fim do mesmo. Ali, em letras douradas, lia-se: "Administração de Pessoal". Havia uma escrivaninha de frente para a porta, e por trás dela, um homenzinho calvo e rechonchudo, de terno cinza. O homem acenou, convidando-o a entrar e ele assim o fez. Havia uma cadeira vazia, à esquerda da escrivaninha, e o homenzinho indicou-lhe que se sentasse. Agrupou alguns papéis espalhados e só então lhe dirigiu a palavra.

- Você está entediado em trabalhar aqui, 6784?

O Trabalhador franziu a testa.

- Não senhor. Estou muito satisfeito por poder servir ao país e à esta empresa.

- Você tem consciência do tipo de trabalho que fazemos aqui, 6784?

O Trabalhador limpou a garganta. Aquilo estava parecendo um interrogatório da Polícia de Costumes.

- Trabalhamos no esforço de guerra, senhor.

- E há alguma coisa divertida no esforço de guerra, 6784?

O Trabalhador engoliu em seco.

- Não, senhor... de forma alguma, senhor... nossos soldados podem morrer se não fizermos o trabalho de montagem de equipamentos bem feito!

- Folgo em saber que você tem consciência cívica, 6784... e no entanto...

Olhou para o papel que estava no alto da pilha à sua frente. Um memorando em papel amarelo, escrito com tinta azul. Letras grandes, de forma.

- E no entanto... foi anotada aqui uma infração cometida por você ao fim do turno de ontem.

Um filme mental passou diante dos olhos de 6784. O que ele fizera de tão errado ao fim do turno anterior?

E então ele se lembrou. Com terror.

- Senhor... - começou a dizer, sentindo as lágrimas lhe virem aos olhos.

O homenzinho fez um sinal para que silenciasse.

- Agora já não parece tão engraçado, não é 6784?

A voz do Trabalhador veio rouca:

- Senhor... eu peço perdão.

O burocrata cruzou os braços.

- Será que pedir perdão é suficiente, 6784?

- Senhor... eu...

- Você pensou nos nossos soldados mortos nas mãos do inimigo cruel e insidioso, 6784?

A resposta veio num grito de dor.

- Senhor! Jamais, senhor! Jamais!

O homenzinho abanou a cabeça, entre penalizado e contrafeito.

- E no entanto, 6784, está escrito aqui...

E bateu vigorosamente com o dedo indicador sobre o papel amarelo.

- Está escrito aqui que você foi visto SORRINDO ao final do turno de ontem!

Inclinou o corpo sobre a mesa e sussurrou, entredentes:

- A partir de agora, 6784, você terá que achar graça em outro lugar. Está demitido!

- [05-11-2017]