O MILAGRE
Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olhará de volta, para dentro de ti. (Friedrich Nietzsche)
Conta-se que, há muito tempo, um homem inescrupuloso dizia ter o dom da cura.
Falava que podia curar qualquer doença e fazia disso o seu meio de vida. Tinha fama de benzedor e curador. Garantia enxotar água-nas-juntas, algueiro, alôjo e antójo, somente com um sopro. Era só fazer o sinal da cruz e salpicar umas gotas de água benta que curava barriga farosa, berruga, bicheira de vaca, bicho de pé, boqueira, bucho quebrado e caduquice. E ganhava muito dinheiro com isso.
Certo dia, porém, um espírito que andava por ali a rodeá-lo, desceu ao seu lado e falou dentro do ouvido dele com uma voz fria e metálica como aço, deixando no ar um aroma de cânfora. Quando o espírito falava, o homem dizia que tinha a impressão de que tudo ao seu redor silenciava, como que se estivesse envolto numa bolha. Também experimentou um gosto de cravo-da-índia na boca, como aquele gosto de metais, quando se vai ao dentista.
- Querer um dom de curar os enfermos não é de bom alvitre, mas posso tocá-lo e poderás curar um homem em uma cadeira de rodas. – Disse a ele, o anjo.
O homem disse que assim o quis. O toque do anjo foi tão gélido e ao mesmo tempo como se fosse um ferro em brasa lhe queimado a pele.
O querubim apontou para um homem que levava um rapaz numa cadeira de rodas. Aquele rapaz – falou o espírito – havia nascido com paralisia cerebral e o velho pai, semblante cansado, resignado, cuidaria, é certo, daquele filho para toda a vida, sem descanso algum, e aquele filho seria como um fardo.
O espírito falou então com voz de mármore:
- Por que não tenta curá-lo?
O homem então foi, e tocou o rapaz na testa e este, levantou de um salto, como quem acorda de um pesadelo! O pai, atônito, maravilhou-se de tão grande prodígio! Um verdadeiro milagre!
O benzedor então encheu-se de orgulho e soberba e o pai do rapaz encheu-lhe de dinheiro.
- Pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, realizando sinais e maravilhas, com o objetivo de enganar, se possível, os próprios eleitos. – Falou o espírito dentro do ouvido do homem, que desdenhou do anjo.
E passou-se assim o tempo devido e o tal homem que dizia ter o dom da cura, não curou mais ninguém. Desesperado, febril, rogando e se remoendo em dor, andou procurando o anjo, sem nunca o ter encontrado. Ele disse então que, muito tempo depois, - talvez anos - foi visitar o rapaz que havia curado.
Teria sido melhor não ter sabido.
Logo depois de curado, já em casa, o rapaz começou então a espancar o próprio pai. Culpava-o por tudo, por ter nascido daquele jeito e por ter perdido toda a juventude numa cadeira de rodas. Tornou-se um homem de péssimos hábitos e começou a ter mudanças surpreendentes na personalidade e no humor. Tornou-se extravagante e antissocial, praguejador e mentiroso, dado a bebedeiras e zombarias, com péssimas maneiras, e um criminoso da pior espécie. Não demorou muito – segundo contaram – que as agressões do filho ao pai se tornassem mais violentas e o velho, não mais suportando as agressões gratuitas do filho, matou-o com um vergalhão de ferro, atravessando-o impiedosamente. O velho enlouqueceu e foi encarcerado em manicômio judiciário. Gritava que tinha aceitado um presente do próprio Diabo.
O homem, então, o benzedor, caiu em si e lembrou-se do que dissera o anjo.
E também se lembrou que desdenhou do anjo.
Pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, realizando sinais e maravilhas.