Do lado de lá da razão.

“Tudo o que podemos dizer sobre nossas vidas segundo me parece não passa de palavras.”

Simone de Beauvoir

Não escutariam sequer o seu grito de adeus, a sua corridinha ao redor da casa. Estavam ocupadas com a televisão ligada enquanto tentavam acessar a internet. Não ouviriam nem que sua voz fosse mais forte do que os estrepitosos trovões que chacoalhavam o céu; nem que sua voz fosse os raios que bombrilham e riscam o véu das nuvens. As filhas só podiam ouvir o próprio desespero.

-Hora de tomar o remédio!

-Saia já do banheiro!

Lá fora, no temporal, caminhou resoluta em direção ao chiqueiro dos porcos. Depois andaria mais vinte metros até o curral das vaquinhas. Adiante, liberdade. Ninguém que valha a pena sentiria mesmo a sua falta.

-Ela não está no banheiro.

-Milagre. Ela não sai do banheiro.

Olhou para os porcos. Dois deles: o malhado e o preto. Se entre eles e ela pudesse haver diálogo seria algo do tipo:

-Você não vai mais nos dar comida?

-Nem vou comer vocês, nem seus filhos.

Pensou estar louca. Porcos não falam. Também não precisam. Seus roncos e grunhidos dizem tudo: fome, dor, frio, medo, raiva. Não precisam se esconder como nós, intuiu a senhora, atrás de um monte de palavras para quem finge nos ouvir. Dão logo guinchos perturbadores que abalam os nervos e reclamam a atenção.

-Mãe, mãeee....onde se meteu?

-Deixa, quem é vivo sempre aparece.

Sentiria falta da Estrelinha. A única, dentre as que tivera, que vinha lhe esperar encostada nas tábuas do curral. Olhava para ela com os olhos mais tristes que se possa ver em uma vaca. Duas massinhas de modelar cor de mel, pareciam. Várias vezes, na aurora, intuiu que a pobrezinha chorava. Será possível, pensou, que as mãos transmitiam a solidão do meu corpo para suas rosadas tetinhas? Sem resposta, ordenhava com mais rapidez. Queria acabar logo com aquilo.

-Não acredito que ela tá na chuva!

-Vai se resfriar além de tudo.

A uma segura distância das filhas as via como quem desconhece. Sabia que eram seu sangue. Sabia que eram queridas. Mas não queria mais saber. Estava só. Só e sabendo-se só. Elas estariam melhor na varanda, melhor na casa. Ficariam bem sem ela. Mas não tinham coragem de admitir.

-Sai daí, mãe! Olha o vento!

-Vem ao menos pegar um guarda-chuva.

As filhas abriam suas enormes bocas mecanicamente. Só abriam com vontade e gosto quando era pra gritar: hora do remédio, hora do café, hora de dormir. Ora, ora, estava cansada de olhar para as filhas e vê-las desviando o olhar. Sabia, no fundo, o que elas sabiam: que no futuro se tivessem sorte seria como ela. Uma simples camponesa cuidadora de animais. Se não tivessem sorte, casariam de papel passado. Aí cuidariam dos animais e dos homens.

-Mãe, a senhora precisa contratar alguém.

-Mas, tem que ser alguém que a gente aprove.

A chuva só lava por fora, pensava ela. Haja chuva pra lavar minhas lembranças. Teria que chover o Nilo e as pragas do Egito. Não quero guarda-chuva, nem remédio, nem horário. Quero liberdade, quero minha beleza. Minhas filhas enfeiaram quase tudo que já achei bonito. Passaram lama no meu espelho.

-Mãe aonde você vai?

-Espera, espera, volte aqui!

Simplesmente virou as costas. Atravessou a cerca de arame. Olhou para o horizonte carregado e nebuloso. Pensou que se não fosse longe, ao menos iria para algum lugar. As filhas ficaram acenando da varanda e balançando suas cabeças grandes. A seguir adentraram a casa, pois desconfiaram que o sinal da internet havia voltado.

make
Enviado por make em 29/10/2017
Reeditado em 02/11/2017
Código do texto: T6156858
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