Quem pode explicar...
Quem pode explicar...
Descia uma gota de suor incômoda pelo meu rosto. Respirava com dificuldade, pois além do cigarro aquela cidade eleita por mim como futuro, indicava - me o cemitério.
Era a terceira reunião de um dia que se iniciara antes da alvorada.
Rotina medíocre que exercia por décadas; para ser sincero estava exausto! Digo assim por que não se deve expressar raiva através de palavrões.
Adorava minha família: todos, sem exceção guerreiros preparados dentro dos princípios da força positiva; o corpo ereto, essas coisas, sabe... Pensamento firme vinte e quatro horas por dia. Suprimir o corpo mole e manter sempre a cabeça para cima.
Nem um rádio, no meu carro mil novecentos e antigamente, então eu mesmo fazia todas as vozes: aquelas da memória e outras compondo minhas esperanças que já se perdiam com o vento que entrava pelas janelas mal fechadas do meu velho automóvel.
Uma buzina fantasma soou de um algum lugar, acompanhada de um tanque de guerra ou algo parecido. Meu carro voou por cima de outros que voaram por cima de tudo. Deve ter sido um destes desastres que não cabe na máquina fotográfica. Desacordado ou morto! Não sei qual dessas condições era a minha, sei apenas que não participei da dor. Sai ileso e caminhei em direção a um gramado que me levou a uma casa de madeira pequena e singela. Jardim na frente, pomar de maçãs, arbustos reforçando o verde das hortaliças. Mais parecia um quadro impressionista.
Bati palmas, nada! Bati na porta, nada! Toquei o trinco e a porta estava aberta. Para a minha surpresa um cartaz nominal: seja bem-vindo! Há chá e bolachas na mesa – sirva-se.
Sentei-me, completamente desentendido. Comi bem devagar aproveitando para um reconhecimento no interior da casa. Respirando suavemente observei aquela beleza interior. Luz natural, poucos móveis, mas todos de extremo bom gosto.
Termine o café e suba para o quarto. Você precisa descansar. Parecia que a voz era da própria casa, que emendou – aproveite para se livrar destas roupas e coloque outras mais confortáveis. Há no quarto um guarda roupa com seu manequim. Meus olhos percorreram os trezentos e sessenta graus de uma circunferência e não vi ninguém.
No quarto o incrível! Nem minha mãe ou mulher compraria uma bermuda e sandálias tão próprias para mim. Alguém leu meus pensamentos, imaginei!
Diante de uma cama de casal, melhor uma cama de reis, não resisti, tirei uma soneca. Vai saber quanto durou... Mal acordei e li no cartaz estrategicamente colocado no teto. Faça dessa, a sua casa. Faça o que puder para recuperar seu físico e seu equilíbrio emocional. A voz da casa completou; por que não vai tomar um banho no lago, aproveita e leva uma vara de pesca.
Obedeci! A água estava ótima. Depois de liberar o adolescente adormecido ao brincar e algumas boas braçadas, saí e contornei as margens do lago até encontrar um lugar para pescar.
Alguns segundos se passaram para o primeiro peixe beliscar. Foi mais esperto que eu. Não foi fisgado. E vieram outros que passavam nadando com as costas para fora, coladinhos ás margens. Eles riam de mim, eu ria deles. Só faltaram dançar sobre as nadadeiras, deixando o corpo para fora da água, como fazem os golfinhos e também nos desenhos animados. Curiosamente havia entrado no jogo e não me irritara como em outras ocasiões de pescaria. Não peguei nenhum...
O último deles trouxe um cartaz – porque você não dá uma corridinha em volta do lago e vai até a cascata. Achei uma boa ideia suar um pouquinho. Quinze minutos e lá estava eu na cascata. Deitei sobre as pedras e ouvi aquela doce melodia tocada por um conjunto formado por pedras e águas. Adormeci!
Uma voz suave me acordou. Hora do almoço! Olhei em minha volta e não vi ninguém.
Voltei para casa. Abri a porta e não me contive: sorri e chorei ao mesmo tempo. A mesa posta com as coisas que eu gostava. Um cartaz avisava. Coma só o necessário, o extraordinário fará mal a você.
Terminei a refeição, seguindo o conselho do cartaz. Na varanda uma rede com um aviso: disponível por quinze minutos.
Aproveitei bem este tempinho para uma soneca. Abri os olhos e uma pequena biblioteca indicava alguns livros. Quase todos ligados a filosofia do corpo e da alma.
Li um pouquinho sobre meditação e um caso triste de derrame seguido de infarto. Triste muito triste. Cheguei a chorar...
Algo invisível me induziu a caminhar em direção ao jardim. Lá uma chuva fria tocou os meus pés – notei que estava descalço e com o regador molhando as flores.
Demais! Havia esquecido aquela maravilhosa sensação – pura liberdade.
Como um imã aquela paisagem, os insetos, os beija-flores me prenderam ali até o final da tarde. Aquele momento em que o sol vira uma moeda de ouro e se esconde lá no fundo do horizonte espalhando raios dourados para todos os lados. Acredito que Deus fez um gigantesco buraco na terra, onde existe um cofre para guardar o sol durante a noite e acordá-lo nas alvoradas. Verdade ou mentira faz parte dos mistérios deste universo.
Quando entrei a mesa estava posta para o jantar. Deliciosa sopa de legumes, daquelas que nos faz repetir e lamber os lábios. Inacreditável!
Fui para a cama ao som de músicas clássicas – bem baixinho: volume recomendado para recém nascidos.
Acordei no meu quarto. Enfaixado dos pés à cabeça. As duas pernas penduradas em uma espécie de arara e, esticada por pesos. Minha esposa e meus filhos em volta da cama. Em coro exclamaram: graças a Deus, nossas preces foram atendidas. Abraçaram-me com cuidado e deixando claro que me amavam. Nos seus rostos estampado um grito de felicidade. Ouvi alguém dizer: dois anos inconsciente: só pode ser um milagre.
E eu pensei – quem algum dia poderá me explicar...