Arquivo pendente
Duas semanas depois do desaparecimento da inspetora Carla Honório, eu e minha parceira, Mariangela Torres, descobrimos uma pista entre os papéis da mesa dela na chefatura de polícia: um recibo de entrega de água engarrafada para uma casa de campo, no Bosque das Alfenas.
- Carla alugou uma casa de campo? - Questionei.
- Lembro-me dela ter comentado sobre uma tia-avó, já falecida, que morava por ali... provavelmente, a casa deve estar fechada há um bom tempo - comentou Mariangela.
- Mas porque nas Alfenas? É longe pra burro, além de isolado...
- Talvez exatamente por isso - ponderou Mariangela. - Carla estava fazendo um dossiê sobre os desaparecimentos, e não achamos vestígio disso na chefatura. Talvez estivesse usando essa casa de campo para pesquisar longe de olhares curiosos...
Acessei o computador e tracei uma rota até a tal casa. Levaria pelo menos duas horas de carro até lá.
- Que tal deixar para amanhã? - Sugeriu Mariangela. - Se formos agora, talvez não consigamos voltar antes do toque de recolher.
- O trânsito de saída da cidade pela manhã sempre é ruim... - retruquei. - E há uma pousada à cerca de 15 km de distância da casa... se demorarmos, podemos pernoitar por lá.
Mariangela deu-se por vencida.
- Está bem. Vou requisitar uma viatura... e equipamento para arrombar a casa, se for necessário.
Menos de meia hora depois, pegamos a estrada rumo às Alfenas, Mariangela ao volante.
* * *
Fizemos o check-in na pousada no meio da tarde, e seguimos para a casa de campo por uma estrada vicinal e sem tráfego nenhum.
- Imagino que mesmo antigamente, isso aqui já devia ser bem deserto - comentei, enquanto rodávamos pelo meio da floresta batida de sol.
- O mundo está se convertendo num lugar deserto - respondeu ela, sem desgrudar os olhos da estrada.
Em pouco mais de dez minutos, chegamos à casa, afastada cerca de 100 m da estrada principal. Era uma construção grande, de madeira, pintada de branco, dois andares e um sótão. E mais um porão, como descobrimos pouco depois, quando conseguimos entrar nela usando uma chave-mestra. A luz devia ter sido cortada há tempos, mas ainda estava claro o suficiente para que explorássemos o interior sem usar as lanternas. Estas só foram necessárias quando resolvemos descer ao porão, já que não havia sinal das anotações de Carla Honório nos cômodos visitados. Descemos as escadas de pedra, e lá embaixo nos deparamos com um escritório, montado não só para permitir que alguém trabalhasse ali, mas também pernoitasse, pois num dos cantos havia uma cama de campanha e um pequeno guarda-roupa, onde descobrimos algumas peças de vestuário da inspetora.
O principal móvel, no centro do recinto, de frente para a escada, era uma escrivaninha de madeira, modelo antigo, com seis gavetas - três de cada lado. No meio dela, estava encaixada uma cadeira cinza-escuro, de rodízios. Sobre a escrivaninha, um terminal de computador com um grande monitor CRT de fósforo verde. Atrás da escrivaninha, uma estante ocupava toda a parede, do chão ao teto, repleta de livros, brochuras e revistas. Na parede esquerda, sob um quadro de força, havia uma pia de cozinha, com alguns apetrechos domésticos, um fogareiro e um lampião à gás, ladeado por um bebedouro de garrafão (pela metade) e um tamborete alto. Junto à parede direita, além da cama de campanha e do guarda-roupa, havia uma estante menor, de aço, com fileiras organizadas de pastas registradoras pretas e azuis.
- Creio que vamos encontrar as notas de Carla nestas pastas... - especulou Mariangela.
- São muitas... - ponderei.
- Procure algo como "casos pendentes"... eu vou acender o lampião.
E assim foi feito.
Carla era metódica. As pastas estavam organizadas por ordem alfabética e data. A última, havia sido aberta em 14 de setembro de 28, três semanas atrás. Coloquei-a sobre a mesa e a abri na primeira página. Havia um recorte de jornal preso numa folha de papel A4. Com sua letra apressada, ela anotara na margem, caneta azul: "caso 5267; possível correlação". Mariangela pegou o tamborete e sentou-se ao meu lado.
- Você acha que ela descobriu alguma coisa? - Indaguei.
- Talvez tenha descoberto a verdade... seja lá o que isso for - ponderou Mariangela.
* * *
Voltamos para a pousada no fim da tarde, pela estrada deserta e silenciosa. A proprietária nos recebeu com um sorriso radioso.
- Não sabem como fico feliz em receber hóspedes! É baixa temporada, e tudo anda muito quieto por estas bandas...
Acabamos aceitando o convite dela para jantar, pois, fora as empregadas do estabelecimento, éramos as únicas que estaríamos ali naquela noite.
- Tudo anda muito quieto... mas também muito seguro, não é? - Disse lá pelas tantas Mariangela, tentando fazer graça.
- Pode-se dizer que o mundo reencontrou a tranquilidade... - respondeu a proprietária. - Por quanto tempo, não sabemos, já que é uma incógnita se poderemos continuar a existir como espécie depois do desaparecimento dos homens.
E abrindo uma garrafa de vinho:
- Vocês são policiais. Não têm ideia do que pode ter ocorrido com eles?
Mariangela deu de ombros.
- Uma colega nossa pode ter descoberto... ainda não temos certeza.
- Talvez ela tenha encontrado um meio de se reunir a eles... - acrescentei.
Ficamos as três em silêncio enquanto ela enchia as nossas taças. Finalmente, a proprietária comentou:
- Homens... sabem como são... talvez tenham ido na esquina comprar cigarros.
E olhando pela janela aberta da sala de jantar, para a noite que caía cheia de estrelas:
- Uma esquina, muito, muito longe daqui...
- [24-09-2017]