ATRAVÉS DA JANELA

Como fazia todos os sábados, lá pelas onze horas, onze e meia, o velho advogado chegava ao bar e sentava numa mesa - quase cativa - bem em frente à janela, de onde se podia ver, com folga, a praça da Matriz. O dono do bar, seu Alfredo, gostava dele. Servia-o sempre o mesmo: uma garrafa de zinebra do Conde, “Gato Preto” e uma porção de queijo com azeitonas. Como aquele horário tinha pouco movimento, ele e seu Alfredo conversavam sobre quase tudo: mulheres, futebol e política, principalmente.

À medida que o bar ia enchendo, a mesa do velho advogado ficava repleta de gente, amigos e conhecidos que lhe vinham cumprimentar e ali, muitas vezes, entabulavam conversas e debates político-filosóficos que varavam toda a tarde.

Ele saía lá pelas quatro horas da tarde, curvado para um lado, como se portasse o peso de uma imensurável dor.

Naquele sábado, porém, ele chegou bem mais cedo do que o costume, às nove horas. O seu Alfredo estranhou o horário, mas não fez caso. Foi ao balcão buscar a zinebra e o tira-gosto e quando chegou à mesa, não o viu mais ali. Pensou que ele provavelmente saíra e voltaria na hora costumeira. Também não fez caso disso.

No entanto, o velho advogado, continuou sentado na mesma mesa e estranhou o seu Alfredo voltando para o balcão com a bandeja. Chamou-o, mas o homem não lhe deu ouvidos. Ele consultou o relógio e viu que ainda era bem cedo e achou melhor mesmo pedir na hora costumeira, lá pelas onze. Pôs-se então, sossegadamente, a olhar pela janela que dava para a praça da Matriz.

O céu estava de um azul fúlgido, sem nuvens, tão belo como jamais havia visto. Admirou-se também tanto das pessoas sentadas nos bancos da praça, da revoada dos pombos e da correria das crianças que brincavam ali, como nunca antes havia se admirado.

Começou a perceber coisas - com lágrimas nos olhos - que nunca antes havia percebido, como o humilde pipoqueiro nos seus afazeres, de uma tamanha simplicidade. O varredor da praça, com seu macacão laranja, na incansável batalha contra as folhas secas que se recusavam a serem ajuntadas e rodopiavam num redemoinho, como se brincassem com o paciente varredor, que não lhes dava atenção. O mendigo, maltrapilho, sentado em um banco, a mão estendida, invisível, impassível, de um invejável ascetismo, o comoveu profundamente.

Nunca tinha visto as cores da tarde, nem o verde vívido das árvores que balançavam com o vento, sequer o gritante e belo amarelo dos ipês-amarelos!

Abriu a janela para ver mais, para sentir o vento e o perfume das flores. Estava extasiado com tanta beleza e estupefato por não ter notado antes. Achou que estava ficando já meio bêbado, mas lembrou-se de que ainda não havia bebido nada.

Voltou sua atenção para dentro do bar, que já estava cheio. Chamou o seu Alfredo, acenou, mas não obteve resposta. Foi até o balcão e ao chegar próximo, simplesmente empalideceu ao ouvir o que diziam:

- O advogado matou-se hoje, de madrugada, no escritório dele, seu Alfredo! Acabei de vir de lá. O homem tá lá, morto, com uma bala na cabeça.

- Mas não é possível! – Disse o dono bar, incrédulo – Vi ele hoje de manhã aqui no bar! Ele tava sentado ali, na mesma mesa de sempre!

Todos olharam para a mesa. A janela que estava aberta, deixou entrar um vento morno que arrancando as tolhas das mesas, arrebentou os copos no chão - em tão súbito alvoroço – saindo da mesma forma como entrou, deixando para trás um zumbido, semelhante a um lamento de dor.