A CASA DO SONO

Entre o cansaço e a possibilidade do sono, Turíbio reluta em ir pra cama. Sabe que necessita dormir um pouco mais. A noite foi turva. Sonhos ruins com a intermitência de sentir-se entre os viventes e a hipótese sonâmbula de morrer para acordar noutro lugar. Porque pegar no sono é bater à porta da casa da morte, cochicha.

Quando se dorme bem, resulta em novidades no dia seguinte. O sono bom dilui qualquer memória, fala às paredes. Exercita a delação neste relato, tenta registrar aquilo que tenha ocorrido e que furtou o sono bom. Não relembrar nada, nem ruídos ou alterações significativas. Nada digno de nota. O bom sono é como estar do outro lado, após o mergulho no Rio Profundo.

Aliás, a morte preocupa tanto que se vai criando rios para continuar andando na correnteza, como um camalote rio abaixo: uma espécie de ilhota que despenca das margens e desce lépida e fagueira, a contemplar aqueles que estão parados a ver o pedaço da margem agora dentro do rio.

Em verdade, tudo é movimento, nunca se está parado à margem, porque a vida é um rio correndo à revelia dos nossos gostos ou desejos. O sono tem sua casa: esse silêncio de pedra que se abate permeado de cansaços. Parece-lhe necessário morrer para sobreviver ao instante. O Rio Letes tem o seu vigilante e está acordando dentro dele Caronte, o barqueiro.

No bolso, Turíbio leva algumas moedas, mas são poucas, muito poucas para pagar a transposição do rio. A casa da morte pode ser o domicílio do sono. Enquanto ele não vem, reluta em ir pra cama, porque para se sentir vivaz é necessário movimento – já disse há pouco. Turíbio reflete sobre lembranças.

Talvez seja eu o camalote que vi passando no Rio Paraguai, no Pantanal, cercanias de Corumbá. Ali, os camalotes eram muito maiores do que os do rio da casa da infância, que, de ágeis só havia girinos e lagostins do barro, fugindo do extermínio nos bolsões de sujeira, galhos sem vida e baratões noturnos à luz tíbia dos focos de luz refletidos na pouca água dos córregos barrentos, fluindo displicentes entre pequenos calombos frutos de aluviões sedimentados.

Afirma que é preciso tomar o primeiro camalote que passar, e como um trem, correr para os trilhos do esquecimento, porque as ideias teimam em ocupar o cérebro, talvez ansiosas para a delação frente ao passar do rio da vida.

O personagem dentro dele sabe que é assim: nada escapa aos olhos observadores do seu impertinente alter ego, que se diz escritor. Bom dia, boa tarde, boa noite, articula-se no pensamento, prevendo a chegada.

E eis que Turíbio chega à casa do sono e bate à porta. Ninguém atende, porque dentro dela dormita a lerdeza. Talvez a morada do sono seja o caramujo, que anda com a sua própria casa sobre os ombros. Um reduto hermético para a fuga dos rios e dos camalotes que passam. E as vozes somem de um todo.

Só, mais uma vez. Desta feita, o piloto do barco do esquecimento estava em greve. Não havia como passar para a outra margem.

E o transeunte caracol o acolheu sem muxoxos, nada de palavra ou gesto. Tudo ajudava. Até a forte correnteza do rio, que estava em seu nível normal, não ameaçava o barranco das margens. De fora, só se veem as covas à beira-rio, onde dormem os caracóis e suas ambulantes casas.

Cautela! Alguns solertes gaviões-caramujeiros de olhos imensos voejam por aqui, diz Turíbio, bocejando. E, meio sem jeito, esconde-se dentro da única casa disponível, que de imediato, começou a se mexer...

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2012/17.

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