Quando o Amor era beijo...
“Algumas pessoas não entendem, apenas desistem”.
Fabrício Carpinejar
A rosa quente e rubra de sua boca selava a minha e eu tinha medo. O atrito dos dentes demarcava o terreno do receio. O pavor era menor que o desejo e enquanto sua língua tangenciava o céu de minha boca, sua saliva somava-se a minha formando uma terceira coisa que hoje poderia ser chamada de: combustível do desejo.
-Você beija bem! Do que tem tanto medo?
-De não conseguir respirar depois.
Outras bocas surgiram, mas nenhuma com tanta fome e curiosidade. Fiquei muito tempo saudoso dela. Restringi meu contato com os humanos. Agora eu beijava as flores, as árvores e os animais. Certa vez beijei um cão abandonado no parque. Mais tarde, beijava gatos, pássaros engaiolados e girassóis. Até que ela apareceu.
-Um beijo para saber o que você está pensando.
-Me beija até eu não pensar em nada.
Acordava com os beijos dela ao redor do meu pescoço. Às vezes, seu beijo acertava meu ouvido e os sons cavernosos provocavam um trovão nos meus sonhos. Arriscava abrir os olhos, mas seus lábios úmidos e macios conduziam-me novamente para a tenda do amor. Nesses momentos costumava beijar seu queixo e mordiscar de leve sua garganta. A isso eu chamava de alimento de Eros. Até que um dia ela disse cabisbaixa:
-Seu beijo já não é mais como antes.
-Eu também já não sou como antes.
Passei a andar triste pelos caminhos. Usava a boca apenas para comer. Sorria mais com a bochecha e, quando estava realmente feliz, usava os olhos como boca. Falava por eles, degustava com eles, cuspia com eles nas manchetes de jornais. Dessa vez não demorou muito para encontrar outro olho-boca. Ela veio até mim como quem dança: Deslizava esquecida e feliz.
-Por favor, me beija agora e prove que o amor é real!
-O amor é real, mas não é provável.
Costumávamos andar abraçados aos encontrões. Ela priorizava o beijo que era dado ao relento, nas madrugadas, nos parques e jardins onde íamos acampar e, principalmente, os beijos nas chuvas torrenciais. Certa feita, quando chorava baixinho seus segredos íntimos, beijei suas lágrimas e seus cabelos enquanto os meus olhos lhe diziam adeus. A isso eu chamava de lucidez egóica. Numa manhã nevoenta ela disse:
-Dê-me um último beijo, antes de sair.
-Beijarei você como Judas ao Cristo.
Hoje sou sabedor que o melhor beijo foi aquele que eu não dei. Isso, entretanto, não me fez arredio aos beijos. Mas tive que passar pelo batismo de sangue: feri meus próprios lábios no espelho e com o sangue pintei , em letras escarlates, o que diz Drummond: “Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa, amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita”.