CHUMBINHO
Parou em frente à prateleira e ficou a observar as bolinhas prateadas dentro do imenso vidro em cuja tampa estava escrito: "CUIDADO - VENENO". Alguns segundos que lhe pareceram uma eternidade. Cutucou o bolso da calça maltrapilha e retirou algumas moedas com a mão direita, que começou a contar vagarosa e repetidamente, até ter a certeza absoluta de que o dinheiro não faltaria. Seis reais e trinta centavos, era esse o montante de dois dias catando latas de refrigerantes no asfalto quente da zona sul. Seis reais e trinta centavos. A lágrima brotou, mas ele arqueou ligeiramente a cabeça para trás e ela espalhou-se pelo canto do olho e não caiu. Engoliu em seco, até sentir que não havia mais perigo de chorar em público, ali, no meio do mercadinho do seu João. Seis reais e trinta centavos. No pequeno embrulho que colocara em cima do balcão, seis pães, um pacote de 250 gramas de café e 100 gramas de mortadela. Fez um rápido cálculo com os poucos dotes matemáticos que possuia e concluiu que daria algo em torno dos cinco reais, o que o deixaria com cerca de um real e trinta centavos de troco.
Suspirou, coçou a cabeça, pensou mais uma vez na família que o aguardava no barraco de tábua que lavantara com as próprias mãos assim que chegara ao Rio de Janeiro, cheio de sonhos, cheio de esperanças. Os planos de juntar um dinheirinho, voltar para o interior de Alagoas e comprar um pedaço de terra para plantar e colher o seu sustento, tudo fora por água abaixo, diante da impossibilidade de um emprego decente. Semi-analfabeto, mal sabendo assinar o próprio nome, não tivera a mínima chance na concorrência desleal que travara com pessoas de muito mais estudo que ele. Seis reais e trinta centavos. Era tudo o que lhe restava, junto com a dignidade herdada do pai, mas que de nada lhe servia agora.
Assustou-se com o ronco do próprio estômago. Lembrou-se que já passavam das cinco horas e que sua esposa e seu filho ainda não haviam comido nada desde o dia anterior, quando Jonas, o homem que morava no barraco em frente, esquecendo-se da própria pobreza, dividiu seu resto de feijão, catado no lixo de um famoso restaurante.
Decidiu que seria do seu jeito. Chamou por seu João, que parecia muito ocupado para perceber a aflição do freguês, e perguntou quanto daria tudo. O homem fez a soma no papel pardo e depois de errar três vezes, disse:
- Olhe, seu Tonho, tudo dá cinco reais e quarenta. Mas pro senhor eu arredondo pra cinco, e estamos conversados.
Tonho contou as moedas e entregou os cinco reais na mão do outro.
- Seu João, a mulher anda se queixando de rato lá no barraco. Por um acaso o senhor não teria aí alguma coisa pra fazer esse infeliz sumir lá de casa, não?
- Se tenho? Mas é claro!... Olhe aqui! - ele se voltou e pegou o grande vidro cheio de bolinhas prateadas - Chumbinho. Mata e seca o rato na hora. Melhor não há.
Saiu do mercadinho com mais um pacote debaixo do braço. Sabia que isso só era possível porque no morro não há autoridade. Ninguém tem coragem de fiscalizar o que se vende nas biroscas, farmácias e mercados de ponta de rua no alto da favela. Se fosse lá embaixo, no asfalto, seu João já teria sido multado e o mercado fechado pela saúde pública.
Chegou em casa, o filho avistou o pacote e correu em sua direção, com os olhinhos brilhando. Não era grande coisa, mas era a última refeição da família, então tratou de se acalmar (as mãos tremiam feito vara verde) e foi para cozinha fazer o café. A mulher estava na cama, com aquela doença esquisita que a deixara só pele e osso. Nem se aguentava em pé direito, o médico do INSS disse que era por falta de comida. Mas se não teve como comprar o remédio que ele receitou, comida muito menos, de modo que ela só piorava. No fundo, a mulher sabia o que o marido tencionava fazer, os olhos fundos e tristes olhavam para ele enquanto bebia o seu café amargo (o dinheiro não dera para comprar o açúcar), como quem diziam "eu te perdôo". E ele desviava os olhos dos dela, sem poder encarar o seu fracasso em sustentar a própria família. Do alto da parede, uma imagem do Padre Cícero olhava impassível a família silenciosa que fazia sua última refeição.
O menino devorou seus dois sanduíches com uma rapidez espantosa, enquanto tomava café com o resto do açúcar que a mãe
guardara para ele. Era a refeição mais saborosa que comia nos últimos sete dias, por isso sorria satisfeito, lambendo as pontas dos dedos, como querendo aproveitar até o fim o gostinho da mortadela. E o pai, que antes só o observava, sentiu novamente o nó no peito e aquela vontade imensa de chorar. Dessa vez a lágrima driblou o seu truque de arquear a cabeça e escorreu livremente pela face cansada do nordestino. O menino parou de sorrir, espantado que ficou com a cena. Era a primeira vez na vida que via uma lágrima escorrer pelo rosto do pai.
- Pai tá chorando?
Tonho, pego de surpresa pela pergunta do filho, apenas esfregou vigorosamente o olho, enquando demonstrava seu aborrecimento com a intromissão do garoto.
- Que chorando o quê, esse menino!... Foi um cisco que caiu no meu olho - e levantou-se da mesa de madeira improvisada, deixando o filho assustado com sua reação - Chorando... Era só o que me faltava.
Depois da refeição, deitaram-se lado a lado, mãe e filho. Tonho deu um beijo em cada um deles, colocou a cadeira em frente à cama, e aguardou que o chumbinho misturado ao pó do café fizesse o que ele não conseguira fazer: acabar com o sofrimento de todos.