O Causo de Biu da Ribanceira.

(Prelúdio para uma campanha de RPG)

- Não sou do tipo que fala sobre o passado. Na verdade, sou um tipo de homem que não gosta muito de falar.

- Bem. Mas eu insisto que você fale um pouco – Disse o capitão da guarda, enquanto balançava uma caneca cheia de caldo de carne perto das grades da cela.

- O senhor tem razão. Mas não faz muita diferença se eu vou ser enforcado do mesmo jeito.

- Sua pena ainda não foi decidida, rapaz. Por enquanto isso é só uma investigação. Só quero entender o que você fazia no meio da cidade, carregando um saco cheio de orelhas humanas recém arrancadas.

- Não são orelhas humanas. Pelo menos do meu ponto de vista.

- Parecem humanas para mim.

- Não são de humanos comuns, são de assassinos

- Você mesmo as arrancou?

- Sim. É contra a lei?

- Sim... é contra as leis dos magistrados. Mas se forem de assassinos de fato, não vejo muitos motivos para mantê-lo preso, afinal, não sou nenhum magistrado. Mas preciso de mais explicações..

- Então eu vou falar, senhor delegado.

- Estou ouvido.

O chefe da guarda pegou um tamborete e sentou à frente das grades para ouvir. Num gesto de gentileza, ofereceu a caneca com caldo de carne para o homem preso do lado de dentro, que tomou um largo gole e começou a falar.

- Vou começar pelo meu nome. Meu nome é Severino Venâncio da Anunciação. Mas também me chamam de Biu Meia noite ou Biu da Ribanceira.

- Da ribanceira?

- Ah. O senhor vai entender já já.

- Tudo bem. Continue.

- Tenho Dezoito anos, se a minha conta está certa. Sou filho bastardo do velho Virgolino José de Sá Barbosa. Da minha mãe eu não muito lembro bem. Mas pelo que sei era uma mulher da vida que calhou de prender o meu pai com o que tinha no meio das pernas. Vivi de cabaré em cabaré em cabaré, até que o velho se apiedou e tomou-me dela, pois já era velha e sifilítica.

Ele trouxe-me para sua casa quando eu tinha seis anos e cuidou-me como se fosse filho legítimo. Mas o meu pai era casado com uma mulher de origem quase nobre. E ela desde o primeiro dia deixou claro o seu desdém por minha pessoa. Meu pai tinha uma filha dessa mulher, que tinha quase a minha idade. Amanda de Sá Barbosa. Uma menina muito gentil, a quem me apeguei muito e confesso que de vez em quando até fazíamos umas coisas que irmãos não fazem entre si.

Vivíamos numa pequena vila na fronteira deste condado. Não sei se o senhor conhece. A vila-do-cu-do-mundo. Fica logo abaixo do vale da boceta, por onde escorre o Rio Mijado.

- Conheço sim. Já fiz patrulhas pela região quando era mais jovem. Mas confesso que hoje mal consigo me lembrar de tal lugar.

- Continuando. Meu pai era vendedor e artesão. Fazia calçados, roupas e gibões de couro. Daí seu apelido de Zé da venda, ou Zé do couro. Vivíamos de forma quase próspera. Minha Irmã seguia o rumo do meu pai, trabalhando com ele na venda e no artesanato. E eu comecei a seguir os passos do meu tio, Alberto Corisco, que era caçador e não se dava lá muito bem com meu pai.

Eu passava meses fora, para a felicidade da minha madrasta megera. Certo dia, quando voltei de uma caçada, soube que meu pai tinha morrido. A minha madrasta me expulsou da casa paterna assim que me viu retornar e eu segui meu rumo.

- Até agora não entendi como essa história explica as orelhas na sua bolsa.

- Se o senhor tiver paciência, eu posso chegar lá.

- Tudo bem. Eu tenho a noite toda, mesmo. Nada acontece nessa merda de cidade.

- Pois bem. Eu tinha catorze para quinze anos quando se deu esta mudança na minha vida. Procurei pela minha mãe nos bordéis da região, mas sem sucesso. Encontrei, no entanto, uma de suas amigas mais jovens que me disse que ela falecera anos atrás. E assim me vi órfão de pai e mãe. A puta que, de fato, era muito amiga da minha mãe, me recebeu da melhor forma que pode. E eu digo isso por que em pouco tempo eu já estava debaixo das suas saias sem pagar um tostão. Segundo ela, minha mãe havia a ensinado tudo que ela sabia quando chegara a esta vida de raparigagem, a o que era muito grata. Ela devia ter o dobro da minha idade, mas ainda conservava alguma formosura incomum às mulheres que vivem dessa ingrata profissão.

Não precisou de muito tempo para que eu a convencesse à sair dessa vida, e juntando nossas economias, arrendamos um pedaço de terra improdutiva à beira de uma ribanceira. Daí meu apelido, Biu da Ribanceira.

- Tá explicado – disse o Delegado com um sorriso.

- Construímos uma casa simples, e montamos uma pequena plantação de macaxeira. Minha mulher fazia farinha e um vinho esbranquiçado que fazia muito sucesso nos bordéis da vila-do-cu-do-mundo, e eu completava a renda com minhas caçadas. Aos quinze anos eu comecei a botar menino no mundo, mesmo antes de me sentir completamente homem e adulto. Mas assim é a vida, não é? Eu ainda era um menino, quando minha mulher pariu um par de crianças. Dei-lhe os nomes de Givanildo e Mariana. Sem sobrenome mesmo, por que pobre não tem sobrenome... os que tem, o tem por presunção. O que não era nosso caso.

Vivemos, por um bom tempo, com toda a tranquilidade que dois fazendeiros pé rapados podem viver num mundo como o nosso. Minha madrasta morreu pouco tempo depois, e Amanda começou a vir nos visitar. Apegou-se muito aos meus filhos, e sempre nos ajudava da forma que podia. Nesse ponto eu achei que teria uma vida comum como qualquer outro homem. Daquelas vidas que passam e a pessoa nem nota, sem que nada de especial aconteça. Mas eu não podia estar mais enganado.

- Espere, meu filho. Vou pegar algo para molhar a garganta, por que to vendo que sua história ainda vai muito longe.

- Tudo bem seu delegado. Me faça a fineza de me trazer um engasga gato se for possível, por que é difícil falar tanto com a goela seca.

O delegado se levantou e voltou trazendo duas canecas cheias de uma cerveja forte preta. Ofereceu uma delas a Severino e voltou a sentar-se no tamborete.

Severino tomou metade do conteúdo da caneca de uma vez e continuou sua narrativa.

- Pois bem. Mês passado eu saí pra caçar um urso, pois eu tinha recebido encomenda pela pele e pela carne. Não sei se o senhor sabe, mas caçar urso é um negócio complicado. O bicho é grande e esperto. Você tem que usar armadilhas e pegar o bicho de tocaia. Só que um urso ouve, cheira e corre mais do que a gente... e com certeza é mais forte. Meu tio mesmo, cavalo velho caçador, perdeu um braço pra um urso preto que não era nem adulto. Mas eu precisava do dinheiro, então resolvi aceitar a proposta.

Sequer me despedi direito da nega velha e das crianças. Nunca gostei de despedidas e dessas emocionalidades. Vesti o meu gibão, peguei o meu arco e meu machado e me pus no rastro do bicho.

Passada uma semana na caça, só consegui um filhote, e não sabia se seria suficiente para satisfazer o meu contrato. O pior é que eu tinha certeza que a mãe do bicho vinha logo atrás de mim. O filhote tinha quase duas vezes o meu peso, e era difícil de arrastar. Mas logo alcancei o acampamento onde eu tinha deixado minha mula e minha carroça. Carreguei o bicho e segui pra casa, esperando que a velha ursa tenha desistido de me caçar.

Quando cheguei nas redondezas da minha casa, eu vi a fumaça no horizonte. Apressei a mula, com um pressentimento ruim no coração. Dei de cara com três cabras em cima da minha nega velha, e um, pendurando meu filho pelo pescoço numa árvore.

Saquei meu arco e derrubei logo o que tentava matar meu filho, mas ai os outros três me viram. Com muita sorte eu talvez conseguisse derrubar dois. Eu tava fodido, mas no desespero a gente encontra forças que vêm não sei de onde. Acertei outro no braço com uma flechada, larguei o arco e saltei da carroça já com o machado em punho para cima dos outros. Não lembro muito bem do que se sucedeu, mas tenho certeza que abri um dos três da cabeça até os rins com uma machadada, mas fui acertado com uma porretada na cabeça e caí semi desacordado. Só que aí, acho que o destino, querendo não ser tão filho da puta comigo, aprontou uma das suas. Ouvi um rugido vindo da mata, eu pude ver, com minha visão ainda embaçada, uma ursa preta se aproximando. A bicha marcou carreira e pulou em cima dos bandidos, despedaçando um deles. Me fiz de morto, enquanto o outro fugia. A ursa ainda me cheirou, mas logo foi embora. Me levantei e corri para o meu filho. Givanildo estava morto. Enforcado.... Eu não chegara à tempo. Peguei seu corpo no braço e corri até a minha esposa. Tinha sido violentada e torturada. Balbuciava algumas palavras quase ininteligíveis. Entendi no entanto que ela me mandava procurar Mariana dentro da casa.

A menina estava viva, ainda. Mas em estado de choque, na casa parcialmente em chamas.

Peguei a garota nos braços e corri para a carroça. Minhas esposa não resistiu aos ferimentos, e a garota era tudo o que eu tinha agora.

Carreguei os corpos até a carroça com a intenção de levá-los até a cidade, para a casa da minha irmã. Mas não antes de saber quem eram os bandidos. O que eu havia acertado com uma flecha no pulmão direito, cuspia sangue, mas ainda tentava falar, pedindo misericórdia. Mas eu não tinha nenhuma dentro de mim.

Perguntei o nome do miserável que havia fugido... E tudo o que ele conseguiu dizer antes de morrer foi “Navalha”... “Navalha”... Não tenho certeza se era esse o seu nome, mas eu iria caçá-lo até os confins da terra. Até a casa do caralho, se necessário.

Arranquei as orelhas de todos os assassinos e salguei, para carregar comigo e lembrar-me do meu objetivo... Vou enfiá-las goela à dentro de quem quer que seja esse tal “Navalha”. Se é que é de fato uma pessoa.

Deixei minha filha na cidade, com Amanda, e aqui estou. À caça deste miserável.

Seus guardas me encontraram e tentaram extorquir o dinheiro que eu não tinha quando tentei entrar na sua cidade. E aqui estou agora.

O delegado ponderou um tempo, considerando tudo o que eu havia dito e falou, por fim.

- Navalha é um notório bandido nessas redondezas. Existe uma recompensa para quem capturá-lo. Se de fato é essa sua história, e eu acredito que seja, não tenho motivos para mantê-lo preso. – Disse, enquanto se levantava para abrir a cela.

- O senhor é um bom homem, delegado.

- Só faço meu serviço, meu filho. E espero que você consiga a justiça que procura. Mas temo que Navalha não esteja aqui. Ele foi avistado pela última vez ao sul, quando invadiu uma prisão e soltou todos os condenados de uma vila próxima. Agora ele tem um bando de seguidores e segue atacando pequenas fazendas mais afastadas deste condado.

- Muito obrigado, seu delegado. Era mais do que eu podia esperar por hoje. – Disse Severino, enquanto saia da cela e juntava suas coisas.

A caçada seria longa ainda. Mas talvez um dia pudesse voltar para sua ribanceira e para a paz que tinha antes em sua vida.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 16/08/2017
Reeditado em 16/08/2017
Código do texto: T6085801
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