O nascimento da Tragédia
Meu nome é Tragédia. Não, esse não é o meu nome de batismo ou de registro civil, mas o nome que surgiu no peito de minha mãe e de meu pai: uma tragédia. Não, não surgiu mesmo no peito deles, só quis dar um sentido poético a isso. Na verdade o nome surgiu da mente deles, mente apavorada, mente desesperada por perceber o que é ter um filho em meio à pobreza extrema: uma tragédia. “Essa criança é uma tragédia!” Foi isso que eu ouvi em meus sonhos antes de nascer.
Naquele tempo antes de eu nascer realmente me achava uma tragédia. Chegava a me achar um egocêntrico por invadir arbitrariamente um corpo sem pedir licença. Desejava ansiosamente existir fisicamente, então tracei um plano e invadi as entranhas de uma mulher com uma ajudinha de um homem. Não me preocupei em escolher o casal, mas procurei os que estavam à mão. Inicialmente pensei apenas em usá-los e depois seguir a minha vida. Só que a realidade não era bem como eu imaginava, mas antes de eu nascer pensava uma porção de coisas descabidas e a ansiedade me atrapalhava bastante com a lógica da existência.
Então me vi preso a um ventre de mulher e perdi a minha liberdade que tinha antes de eu nascer. Bem, não podia chamar de prisão aquele ventre, pois meus desejos eram atendidos. Não, na verdade não eram atendidos porque a mulher e o homem não tinham dinheiro suficiente para atende-los; mas a minha vontade a incomodava e isso já era prazeroso. Tive que permanecer ali por nove meses, então faria de sua vida um inferno. Esse era meu pensamento, sei que não tinha nada de nobre. Lembro de quando ia dormir naquele ventre vinha-me um sentimento de culpa, mas desde que de lá saí vi que a existência também não tinha nada de nobre e me arrependia de ter tido tal sentimento idiota.
Fui crescendo naquele ventre. Faminto. E a cada vez que ouvia o meu nome: Tragédia! Sentia mais ódio. O ódio que eu sentia não tinha um alvo específico, apenas aquela palavra repetitiva estava me cansando. Tinha um plano de acabar com a existência daquela voz que sempre pronunciava esse nome. Voz feminina e voz masculina. Assim que descobrisse como sair dali colocaria em prática meu plano.
Não sei se meus pensamentos poderiam ser sentidos pela dona do ventre, pois lembro de algumas vezes a minha precária existência naquele lugar ser ameaçada. Não fosse a minha agilidade teria morrido naquela pocilga sem antes de dar uma espiadinha do lado de fora. Não posso reclamar desses atentados, pois meus planos de vingança também visavam o homicídio. Bem, escapei ileso.
O tempo passou e vi que estava maior, mais inteiro. Eu não era mais apenas pensamento, mas ganhara um corpo. Percebi que havia uma saída e poderia provoca-la ao máximo de seu desgaste. E o fiz. Lembro de uma correria. Ouvia vozes ofegantes. Percebi que naquele momento poderia dar cabo de parte de minha vingança. Dificultei a minha saída e matei aquele corpo de mulher que me prendera por nove meses.
Hoje não me chamo mais Tragédia. Meu nome é João Carlos de Mattos. Lembro que quando consegui escapar daquele ventre e ter assassinado aquela déspota, o homem que me ajudara a entrar nele já estava morto também. Até onde eu sei ele tinha uma dívida com traficantes e alguns meses antes de eu nascer ele fora assassinado.
Hoje eu me chamo João Carlos de Mattos, matricida. Naquela época não sabia que aquele ventre era de minha mãe. Bem, não tive tempo de amá-la, mas hoje entendo o sentimento de culpa que me visitava nas noites que passei em seu ventre. Bem, o sentimento de culpa era algo que eu compartilhava com aquela mulher que nem sei seu nome, minha mãe. Era o mesmo sentimento de culpa que a vistava quando ia dormir e se lembrava das palavras duras que dizia quando se referia a mim: Tragédia!
Não sou mais Tragédia. Eu me chamo doutor Mattos. Moro em Sydney na Austrália. Fui adotado por um jovem casal naquela época em que nasci, que matei minha mãe e que era órfão de pai. O jovem casal pertencia a uma família de classe média alta, a família Mattos. Ganhei um bom sobrenome, uma boa história e herdei uma boa fortuna. A fortuna dos Mattos me levou à faculdade de medicina e a Sydney.
Meu nome não é Tragédia. Meu nome é João Carlos. Aprendi amar. Tenho uma família e sou feliz. Hoje me encarrego de trazer à vida esses pensamentos ansiosos que existem antes da gente nascer. Minha esposa é psicóloga e prossegue com o tratamento do sentimento de culpa herdado. Mas, para ser sincero, aqui em Sydney esse problema não é tão comum como no Brazil. E isso nos fez evoluir em nossas especialidades médicas e avançamos rumo a novas descobertas.