O inferno dos Números ou 70 x 7
Número 389 conseguira ser atendido para falar com o Número 4. Há tempos vinha tentando ser atendido para poder se explicar perante o chefe sobre o porquê de seu mau desempenho. Quando acordou naquela sexta-feira nublada, normalmente cinza e com cheiro de fumaça, o telefone tocara e ouvira a voz rouca e tenebrosa da Número 297 dizendo que sua entrevista fora aceita.
- Ele vai recebê-lo na segunda-feira próxima.
- Quem?
- O Número 4.
- O Número 4? Sério?
Ele sabia que até o Número 10 estava bom, jamais imaginaria que seria atendido pelo Número 4. O maioral de todos, abaixo apenas Deles. Ficara satisfeito, mas daí vinha um certo incômodo. Por que o Número 4? Avaliou que isso não seria tão bom, ou seja, julgar seu mau desempenho, um assunto para o maioral. Passou o fim de semana deprimido e preocupado. Já se arrependia de ter insistido com a entrevista. Pensou em ligar para o Número 197, seu amigo de faculdade. Número 197 sempre fora bom em redação. Quem sabe ele escreveria uma carta pedindo desculpas por incomodar pessoa tão ilustre. Não, não poderia fazer isso. Era óbvio que seria interpretado como um covarde e perderia imediatamente sua credencial e passaporte. E ele sabe que foi uma luta para consegui-los. Teria que ir até o fim.
- Número 389, por favor, pode entrar.
Anunciou a voz rouca e terrível da Número 297. Da poltrona que estava sentado até a sala do Número 4 levou uma eternidade. Parecia uma via crucis sem perdão. Passou pela porta que media quatro metros de altura simbolizando a hierarquia daquela autoridade. A sala era enorme e tinha como objetivo revelar a grandeza de seu dono, pois sentava-se numa poltrona como trono que se projetava ao alto dando a sensação de pequenez de quem ousava perturbar os pensamentos do líder maioral. A cadeira colocada à frente e absurdamente abaixo do Número 4 cumpria sua tarefa de evidenciar a inferioridade da pessoa. Número 389 amaldiçoava a si mesmo em pensamento. No entanto, com grande surpresa, a voz do Número 4 soava doce e pacífica.
- Olá, jovem, seja bem vindo.
Essa recepção amigável deu ânimo novo ao Número 389.
- Obrigado, Senhor.
- O que te aflige, filho?
- Meu desempenho, mestre. Quer dizer, meu mau desempenho…
- Sim, estou conferindo. Realmente as coisas não foram boas.
- Mestre, se me permite gostaria de explicar o que está acontecendo.
- Sim, prossiga.
- Tenho feito aquilo que aprendi na academia, Senhor. Mas o Teatro vive momentos de indiferença, entende, Senhor?
- Hum…
- Nada mais escandaliza os personagens. Por mais cruel que seja nossa ação, nada é mais novidade. Todas as crueldades já chegaram ao seu ápice. Já fomos ao mais alto nível da radicalidade da violência, mas a indiferença que reina entre os personagens desconstrói toda e qualquer ação diabólica, Senhor. Eles estão cada vez piores.
- Sim, tenho notado isso. Mas estou rodeado de puxa-sacos que com medo de me irritar me preparam relatórios falsos. E não posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo, não é, filho?
- Sim, meu Senhor.
- Admiro e sou grato pela sua sinceridade. O que você sugere? Ou você veio aqui apenas para me falar do mais do mesmo?
- Não, Senhor, jamais faria isso.
- Então, diga-me, o que você me traz?
- Com todo respeito ao Senhor e aos demais superiores. Temos que mudar nossa estratégia. Certa vez experimentei algo novo com um personagem que já tinha atingido um belo número de crueldades. Comecei a influenciá-lo na técnica da dissimulação. Ele começou a diminuir suas ações cruéis e dissimulava caridade. Depois que os outros personagens pegavam confiança nele, ele cometia a crueldade mais terrível e ninguém suspeitava dele.
- Bravo!
Número 389 se assustou com a alegria de seu mestre e continuou.
- Então, Senhor, deveríamos treinar nosso pessoal a desenvolver a dissimulação entre os personagens. A dissimulação casa bem com a indiferença.
Número 389 se tornou em pouco mais de alguns anos o Número 33. Era responsável por um grupo grande de Números. Fora condecorado várias vezes pelo maioral e seus superiores. Por onde passava, Número 33 espalhava a técnica da dissimulação que aliada à indiferença aumentava o território da crueldade. Ninguém era poupado, desde os mais jovens personagens até os mais velhos. Número 4 se deliciava em sua sala com os relatórios que recebia após a efetivação da técnica de 33. Contudo, Número 33 guardava um segredo de seu mestre com medo de perder sua posição e ser severamente castigado. Desde que ele colocara sua técnica em prática que os Três primeiros aumentaram o nível do perdão.