O Fedelho.


Com um ano de idade já sabia ler e escrever. A mãe descobriu num sábado à tarde quando foi dar banho em Armando, mas a família só tratava-o por Armandinho.

Malvina, mãe de Armandinho, bebeu fôlego como uma criancinha de meses, quase morreu de susto, quando o filhin dentro da banheira, pegou a embalagem que embrulhava o sabonete e leu.

-- Armandinho!

-- Fala mãe. Respondeu Armandinho.

Como pode, um ano de idade e meu filho lê! Não é possível! Tem algo errado aqui. Acabrunhada com a situação, empacou entre a alegria e a tristeza, afinal de contas, um guri nessa idade ainda não lê.

Tirou o seu bebê da bacia e levou-o até a cômoda, onde já havia uma toalha aberta sobre o móvel. Enxugou-o, colocou uma fralda descartável, calçãozinho verde, camisetinha azul escura, um tênis e um bonezinho branco de algodão, com uma fivela dourada um pouco acima da pala.

Armandinho foi levado até a mesa da cozinha, sua mãe deitou-o de bruços e foi até o fogão pegar o leite morno para fazer a mamadeira.

Quando Malvina virou e viu o filho escrevendo num saco de papel o nome da mãe, quase se desfaleceu, não foi de cabeça direto ao encontro do piso, porque alcançou a beirada da mesa para se apoiar. Falou horrorizada:

-- Meu Deus do céu! O que é isso! Pai eterno, me ajude!

Armandinho fez que nem ouviu, continuou a escrever no saco de papel com cheiro de pão francês.

Malvina foi até o quarto de dormir e chamou o marido, uma, duas, três, na quarta vez perdeu as estribeiras e gritou se descabelando, as unhas quase lhe sangraram o couro cabeludo:

Burrachudo! Acorda Burrachudo, Deus, dai-me paciência e acorde esse infeliz!

Otávio é o pai de Armandinho, tem uma borracharia há uma quadra de distância de casa, devido seu temperamento extremamente difícil, os amigos apelidaram-no de Burrachudo.
Levantou assustado, e se assustou muito mais com a palpitação acelerada do coração, observou o coração por uns dois minutos, estava aceleradíssimo, uma disritmia de dar solavancos no peito.

Sentou na cama, esperou o coração fazer as pazes com o desespero, suava como se estivesse correndo de um leão, tremia como se tivesse visto uma alma penada dos infernos. Contou até dez sem brusquidão, controlou a respiração e o humor. Olhou para a descabelada da esposa e grunhiu:

-- O que foi agora! Vai, desembucha, fala muiê!

-- Burrachudo, você precisa ver o nosso filho agora, estou morrendo de medo! Se eu falar você não vai acreditar. Por favor, você tem que me ajudar vai, eu estou com uns pensamentos muito ruins, vem comigo vem, vem, não me estressa Burrachudo, peloamordedeus! Falava tentando abalar o marido do lugar.

O rosto estava seco, mas a camisa estava ensopada de suor, os braços e as mãos também. Levantou fustigando a mulher com o olhar de desdém, com o humor nos trilhos e sob controle, acompanhou sua esposa, toda despenteada, os cabelos pareciam um ninho de guaxe.

Entraram na cozinha, foram direto encontrar com o filhinho sobre a mesa. Ela apontou para Armandinho e começou a chorar. Chorava agora como uma criancinha abandonada, tapou a boca, as lágrimas escorriam em abundância, de lavar a alma.

Burrachudo pensou, pensou encafifado, meudeusdúcéu, essa mulher quando não está sorrindo ela está chorando, como pode uma coisa dessa, é oito ou oitenta, pô! Num tem um trinta, ou um quarenta, vá lá um setenta, mas é sempre assim, tudo ou nada!

-- O que tem o menino? Está limpinho, quietinho, brincando com o lápis! Qua-lé Malvina? Pô!

-- Armandinho meu filhinho, você escreve o nome do papai para ele ver! Pediu a mãe para o filhinho. Quase consumida pela avalanche de pensamentos.

-- Qual nome mãe? Otávio ou Burrachudo? Mas eu posso escrever os dois também.

Armandinho empunhou o lápis e deslizou-o suavemente pela imensidão do papel de pão, imprimiu pouca força no lápis para que o grafite registrasse graciosamente as letras do nome do pai no saco de pão.

O pai levou uma mão nas costas, a outra mantinha coçando o queixo, levou a perna esquerda para trás e manteve a direita para frente. Bambaleou a cabeça, tentou manter a cabeça imóvel, impossível, uma força estranha arremessava sua cabeça ora para a esquerda, ora para a direita.

Malvina não afastava os olhos do marido, segurou no seu braço, recostou a cabeça no peito todo molhado de suor do marido, as lágrimas não tinham cessado, todavia, não emitia nem um som, nada, apenas expressava sentimentos de estupefação, alegria e tristeza eram manifestadas simultaneamente.  Pensava.

Seria Armandinho um gênio! Um anjo! Ou o pior, o filho do coisa ruim! Preferiu acreditar que era um gênio, um Albert Einstein talvez da literatura.

Cinco ou seis minutos depois do pai sair do estado catatônico que se encontrava, olhou para a esposa, agora tinha os braços cruzados com as mãos debaixo do sovaco, dobrou os joelhos, quase encostou o traseiro no chão, espiou debaixo da mesa, voltou a posição anterior, olhando fixamente para o filho, balbuciou:

-- Será que é o que estou matutando, Jesus amado! Malvina, você já olhou se Armandinho tem um dente no céu da boca ou uma sequência de três seis na cabeça?

A esposa foi até o filho, pediu para ele abrir a boquinha, a criança obedeceu de imediato, olhou bem, não acreditou nos próprios olhos, passou um dedo indicador, depois o dedão. Nada!

Examinou minuciosamente a cabecinha do pivete, ponderou por uns instantes, correu até o quarto, retrocedeu com a máquina de cortar cabelo, zerou a cabecinha do coitado do menino. Nada! Nada de três seis.

-- Meu filho, a quanto tempo você entende o que as pessoas falam? Perguntou o pai.

-- Pai, eu entendo deste os seis meses, lembro de tudo que o senhor falava para minha mãe de madrugada, aliás, pai, cada palavra feia hem.

E a senhora mãe, em vez de corrigi-lo, a senhora ficava rindo e dando gritinhos! Falou Armandinho olhando para os pais.
Burrachudo sem saber o que fazer, olhou para a esposa e disse:

 -- Vou trancar esse moleque num cofre todas as noites, ele não pode dormir no nosso quarto mais, nem pensar, tudo isso é um absurdo. Toda essa história é o fim-da-picada, você me ouviu né muiê!

 Malvina correu até a mesa, pegou o filho e falou abraçado com o filho bem firme:

-- Você é louco, que palhaçada é essa, seu idiota, onde já se viu, trancafiar um filhinho dentro de um cofre. Ele vai morrer por falta de ar, seu monstro!

-- Malvina, mas você é burra hem, eu falei num sentido figurado, sua besta, só você e essa sua cabecinha para pensar que eu depositaria nosso filho num cofre. Oh meu Deus do céu! Dai-me força e inteligência.

-- Se você fizer algum mal para o meu filho eu te mato hem, te mato quando você estiver dormindo. Quando você acordar, você vai estar mortinho da silva. Você está me ouvindo bem né Burrachudo!

A primeira semana foi muito difícil para os pais de Armandinho, parentes e amigos começaram a chegar aos montes, só para futricar e espiar o pirralho.

Na frente dos pais, as pessoas falavam que o menino era um gênio, um anjo bom, coisas do gênero, mas era só os pais darem as costas para a trupe, a trocação de olhares fervilhava dentre eles. A maioria, à boca miúda, sussurravam contorcendo a boca:

-- É o demônio em miniatura, esse moleque vai ser o capeta quando crescer. Dizem que ele já leu a bíblia detrás para frente, é o cão mascando Bombril.

Com um ano e um mês, o pai levou alguns livros para o filho ler, quando deram um livro de criancinhas para ele, Armandinho balbuciou com uma irritação visível:

-- Deixam de ser bestas, eu lá quero essas bobagens aí, eu quero aquele ali na estante oh, apontando o dedinho.
Os pais foram até a estante e perguntaram:

-- Este mesmo?

Armandinho confirmou, e os pais não acreditaram, queria ler Machado de Assis, entrementes, com um ano e dois meses, estava lendo A Ilíada e A Odisseia de Homero, por fim, no mês seguinte, estava lendo Fiódor Dostoiévski. De vez em quando fazia algumas anotações nas bordas das páginas. Mas o tampinha se divertia muito mesmo, era lendo Nelson Rodrigues.

Senhora Gertrudes, avó de Armandinho, certo dia apareceu na casa de posse de uma bíblia, cumprimentou a nora e zarpou direto para o quarto do netinho, chegando lá, falou assim com o netinho:

-- Armandinho, meu netinho preferido, lê essa parte passagem para mim e me diz o que você acha?

O netinho leu em voz alta e bem clara, entrementes, manifestando uma neurastenia por ter ouvido o 'preferido' era o único neto dela, depois disse à sua vó.

-- Vó, a senhora sabe que esse livro é a bíblia né! Então é o seguinte, acho melhor a senhora procurar um padre ou um pastor para lhe dar esclarecimentos a respeito dessa passagem, porque eu não entendo nada de bíblia, não quero entender, não entro em debates religiosos e tenho minhas próprias maneiras de confabular com Deus.

Foi a melhor guisa que o geniozinho encontrou para defenestrar a vovozinha do seu quarto.

Como a vovó não foi feliz na sua empreitada, passou a espalhar que o neto era filho de satanás mesmo, tudo porque o fedelho corria de discussões religiosas, como o diabo corre da cruz. Pode?

Com um ano e quatro meses, Armandinho pediu para o pai comprar um caderno ou um laptop. Queria escrever contos.

O pai fez as contas e concluiu que um laptop seria melhor, afinal, com um ano e quatro meses esse nanico já vai começar a escrever, aos cinco anos de idade o que comprasse de caderno, daria para comprar uns dez laptops.

Burrachudo pegou o menino no colo e levou-o até uma loja de informática, o pirralho escolheu um aparelho mais simplesinho, o moleque era o capeta mesmo, escolheu o mais baratinho.

Armandinho confidenciou ao pai bem baixinho, que precisava só de escrever seus contos, nada mais. O pai estranhou, afinal de contas, num mundo de hoje, os adolescentes só querem os mais caros! Tudo bem, fez a vontade do pimpolho.

No caminho de volta para casa o pestinha viu um livro no canto da calçada, pediu para o pai pegar para ele. Pelo fato do livro estar sem capa e sem nome do proprietário, o pai pegou e repassou para a criatura mais nova no planeta a ter um laptop.

Burrachudo julgou que não havia surrupiado ou lesado o dono do livro, afinal de contas, não encontrou nenhuma identificação do proprietário.

Já em casa, o pai deixou o filho no berço com o livro achado, O espertinho folheou, folheou, folheou várias vezes o livro. Percebeu que era um livro de contos, mas não tinha o nome do autor, da editora, referências, introdução ou dedicatórias, nem índice.

Os contos não tinham títulos. Deduziu que o início de cada conto começava quando o texto iniciava exatamente no meio da página e o final do conto também se dava no meio da página de forma simétrica.

Armandinho leu todos os contos, anotou nomes, frases, parágrafos, ideias, expressões, um pouco de cada coisa que julgava importante.

No domingo bem cedo daquela semana que ganhou o laptop, O pirralho acordou cedin, pulou a grade do berço, foi andando até a cozinha, como ela estava um pouco escura, empurrou uma cadeira até próximo do interruptor, subiu na cadeira, ligou o interruptor, a cozinha ficou toda alumiada, desceu da cadeira, colocou-a no lugar que a encontrou.

Empurrou outra cadeira que estava mais próxima da pia, empurrou-a até ficar coladinha na pia, subiu nela, pegou uma panela limpa do escorredor, colocou três copos nadir de água na panela, arrastou-a até o fogão que fica junto a pia. Ficou nas pontinhas dos pés e alcançou a caixa de fósforos, acendeu a boca do fogão que estava debaixo da panela com água.

Desceu da cadeira, foi até o armário, na porta de baixo do lado que fica perto da pia, abriu, pegou o café em pó. Fechou a porta do armário e retornou para a cadeira que estava coladinha na pia, empurrou-a só um pouquinho para a direita, subiu na cadeira, pegou uma colher do escorredor, abriu o pote de café em pó e derramou quatro colheres de café na água que começava a ferver.

O moleque desceu da cadeira, empurrou-a novamente a cadeira só um cadinho para a esquerda, pegou o suporte do coador, o coador de pano, e a garrafa térmica que estavam próximos do escorredor.

Desceu da cadeira, deslizou-a um bocadinho para a direita, escalou-a novamente, desligou o fogo, não levantou a panela quente, apenas deslizou-a até a pia, próximo da garrafa térmica.

Desceu da cadeira, deslocou-a para a esquerda pela última vez, trepou na cadeira mais uma vez, pegou um pano de prato que estava descansando no cano da torneira, enrolou-o no cabo da panela e ergueu a panela até o coador, entornou tudo dentro do coador.

Não levou muito tempo, havia café quentinho e coado na hora dentro da garrafa térmica. Armandinho desceu com todo cuidado do mundo da cadeira com a garrafa térmica debaixo do braço direito. colocou-a em cima da mesa. Empurrou a cadeira de volta para onde ela estava quando ele entrou na cozinha.

Finalmente, foi até o armário, pegou uma caneca de plástico que tem a alça bem larga e confortável para segurar. Foi até a mesa, pegou a garrafa térmica e se mandou para o seu quarto.

Quando passou perto da porta do quarto do pai, deu uma paradinha e falou:

-- Eu sei que vocês dois estavam me espionando enquanto eu fazia o café, que coisa feia hem, ficar bisbilhotando a vida dos outros. Não façam mais isso não hem. Da próxima vez, me ajude, eu tenho que fazer tudo sozinho? Ah não!

Depositou a garrafa dentro do berço, pegou seu laptop e botou dentro do berço também, tudo passou perfeitamente pelo vão das grades do berço. Por fim, trepou no berço e transpôs a grade e se juntou aos seus pertences.

Burrachudo e Malvina acharam tudo muito engraçado, apesar que seu esposo continha um certo temor pelo filho, não estava convicto se o menino era um anjo do bem ou um anjo do mal. Carregava na mente um ditado quando o filho lhe surpreendia: “desgraça pouca é bobagem”.

O pai levantou da cama com um baita humor, ria pelos cantos da boca, algo elástico e viscoso pendia de um dos cantos da boca. Calçou a chinela havaiana e marchou para o quarto do filho, entrou e viu o capetinha digitando no laptop com a garrafa térmica apoiada no travesseiro, a caneca cheia de café entre as pernas.

-- Posso tomar um pouco do seu café fiote?

-- Claro pai, pega aí.

-- Você esqueceu do açúcar né, e botou pó demais?

-- Não pai, fiz bem forte de propósito mesmo, preciso manter minha mente ligada até terminar esse conto.

O pai com os lábios muito úmidos ainda, quase gotejando café no piso quarto, tomou o restinho de café que estava na caneca, saiu sem falar nada, apenas estendeu o braço com o polegar esticado para cima e com os outros dedos retraídos na palma da mão.

As três horas da tarde, o conto estava pronto, exatamente como terminavam os contos do livro que Armandinho tinha encontrado na calçada. Contos sem fim, exatamente como esse leitor amigo.



 
Acabou!