O relógio

Estou no único quarto da casa que não há janelas, prestes a fazer uma experiência que muitos dizem ser sobrenatural e perigosa, pois ao fim dela posso estar morto, porém como não conheço ninguém que a tenha feito penso que é apenas uma lenda da internet, nada mais que uma perda de tempo, mas como não tenho nada para fazer...

Essa experiência consiste em um ato bem simples, trancar-se em um quarto sem janelas apenas com uma vela e um relógio, desses antigos onde você consiga escutar o seu singelo barulho, “TIC TAC”, simples assim. Eu só tenho que ficar vinte e quatro horas dentro do quarto e sair de lá vivo.

Segundo a lenda, ao final das vinte e quatro horas você se encontra com o próprio Deus ou qualquer entidade superior que seja a sua crença, porém a lenda também diz que ninguém sobrevive a isso pois o que acontece dentro do quarto é aterrador e fatal. Bem, como estou de férias do serviço, sozinho em casa, meus pais estão viajando, é inverno e não tenho nenhum compromisso nas próximas vinte e quatro horas, lá vou eu.

Fechei a porta, infelizmente não tem chave por isso ela não vai ficar trancada mas, o quarto está totalmente escuro por isso acendi a vela e a coloquei no chão ao lado do relógio e sentei-me de frente para os dois

PRIMEIRA HORA

Já fazem vinte e cinco minutos que estou aqui, até agora nada de diferente a não ser o fato de eu não escutar nenhum barulho vindo de fora deste quarto. Nenhum mínimo ruído, o único som que escuto é o TIC TAC do relógio que inclusive agora parece alto demais, se comparado quando entrei no quarto. Se passaram mais dez minutos agora tenho certeza que o barulho do relógio está muito alto, isso é estranho, acho que estou me deixando levar pelos pensamentos bobos que todos temos quando encaramos ou fazemos algo totalmente desconhecido.

SEGUNDA HORA

Já estou aqui há duas horas e meia, já me acostumei com o barulho do relógio ou, ele voltou ao normal não sei, mas tirando isso mais nada de estranho aconteceu.

TERCEIRA HORA

O legal de ficar sozinho aqui é que fico pensando em tudo, divagando em pensamentos, toda a minha vida, o que fiz de bom, o que fiz de errado, o que pretendo fazer no futuro, as pessoas que conheci, muitas ideias. A vela acabou de balançar sinistramente, como se houvesse uma corrente de ar aqui mas, não há pois é tudo fechado, me sinto estranho, de repente começou a surgir um medo dentro de mim, sinto que não estou sozinho.

QUARTA HORA

É incrível como a mente humana pode enganar. Senti um medo bobo há uma hora atrás e resolvi vasculhar todo o quarto com a vela, nada... estou sozinho, me deixei levar pela imaginação. Quase cinco horas desse experimento, confesso que está ficando chato, nada está acontecendo.

QUINTA HORA

Comecei a ouvir uns barulhos, há princípio pensei que era de fora do quarto, sei lá, algum vizinho na rua ou o barulho de algum carro. Mas comecei a prestar atenção agora, e não é nada disso, parece um murmúrio, como se tivesse dezenas de pessoas falando ao mesmo tempo, num lugar bem distante, pois não consigo diferenciar ou entender nenhuma palavra. Vasculho o quarto de novo com a vela, mas não há nada, porém o barulho continua, estou começando a ficar com aquele medo de novo. Agora são cinco horas e quarenta minutos trancado, e uma coisa realmente assustadora está acontecendo, ouço passos no chão de madeira do quarto, são pisadas fortes, procuro mas não vejo ninguém. As pessoas que estavam falando, agora gritam, ainda não entendo nada do que elas dizem mas por vez ou outra ouço meu nome. Descobri que quem está andando no quarto é um homem, ele está chorando e de vez em quando ele também fala meu nome, estou muito assustado.

SEXTA HORA

Resolvi que vou sair do quarto, as pessoas e o homem chorando, que agora está correndo, gritam em coro o meu nome, mas gritam de uma forma que representa muita dor, o barulho do relógio é ensurdecedor, decidi, vou sair, estou com muito medo. Eu não acredito, a porta está trancada, não pode ser, eu só fechei ela, não tinha chave, mas ela está trancada, não pode ser, isso não e real, só posso estar sonhando. Eu quero sair daqui, as pessoas não param de lamentar o meu nome e o homem chorando também, ele está se jogando de encontro a parede, e dá gritos terríveis quando se choca com ela. Parece que está muito machucado, eu apenas imagino isso, pois, não vejo nada, apenas ouço. Ele acabou de dizer que a culpa é toda minha.

SÉTIMA HORA

Todo o barulho parou, eu nem acredito, estava prestes a ficar louco, até o barulho do relógio voltou ao normal. Tento abrir a porta de novo, mas ela realmente está trancada, na verdade se não fosse o trinco eu diria que não há porta, pois não consigo ver o seu formato ou batente. Isso é muito assustador. Estou exausto, essas duas últimas horas de terror minaram as minhas energias, acho que vou aproveitar e dormir, porque estou muito cansado mesmo.

OITAVA HORA

Acordo assustado com o barulho de um tiro de revólver que se assemelha muito à nove milímetros que meu pai tem. Há uma questão martelando minha cabeça, será que sou feliz? Parece que estou sobre o efeito de um tranquilizante muito forte, me sinto como se tivesse fumado maconha mas, tive um sonho muito bom, lembranças boas da minha infância dos antigos amigos, sonhei com coisas boas acontecendo comigo no futuro, estou em paz. Apesar do medo que passei até aqui, sinto que as coisas podem dar certo afinal.

NONA HORA

Eu não aguento mais isso, esse relógio maldito não para nunca com o seu barulho, não suporto mais ficar aqui dentro sem fazer nada, apenas sentado, eu vou sair, vou dar um jeito de derrubar aquela porta. Não posso ficar parado, eu tenho que sair daqui. Não sei o porquê mas estou chorando copiosamente, resolvi que vou começar a correr aqui dentro do quarto, quem sabe alguma boa ideia me vem à cabeça.

DÉCIMA HORA

Estou muito machucado, tentei em vão derrubar aquela porta mas, a única coisa que que consegui foi um corte na cabeça e acho que quebrei algumas costelas enquanto me jogava de encontro a porta, estou com muita dor. Depois de um acesso de raiva comecei a esmurrar as paredes, minhas mãos estão todas machucadas e ensanguentadas, estou muito arrependido de fazer esse experimento. Se passaram dez horas e trinta e três minutos, os barulhos começaram de novo, mas agora são diferentes, são batidas nas paredes, crianças chorando... eu não aguento mais isso.

DÉCIMA PRIMEIRA HORA

A luz da vela apagou, me esqueci disso completamente, deveria ter pego uma vela muito maior. Está tudo escuro e não enxergo nada, nunca senti tanto medo na minha vida, com certeza tudo isso foi uma ideia terrível. Os barulhos se misturam todos, agora é apenas um zumbido ensurdecedor. Sinto que vou enlouquecer.

DÉCIMA SEGUNDA HORA

Por algum milagre a vela se acendeu sozinha, apenas o pavio está queimando, não sei explicar isso mas a luz voltou e os barulhos cessaram, fazia horas que não me sentia tão bem, o silêncio é reconfortante mas, alguma coisa dentro de mim me diz que isso não irá durar muito tempo. Resolvo dormir de novo, estou mais cansado do que nunca.

DÉCIMA TERCEIRA HORA

Eu tive um pesadelo terrível, assustador, horrível, na verdade não existem palavras para explicar o que eu vi enquanto dormia. Enxerguei o inferno, pessoas sendo decapitadas, esfoladas vivas, eu vi homens fazendo atrocidades com indefesas garotinhas, torturas das mais variadas formas e crueldades. Eu vi a mim mesmo matando de forma doentia as pessoas que amo, foi terrível, parece que fiquei anos preso nesse inferno de tormentos e agora que acordei não consigo tirar essas imagens da minha cabeça, eu choro, choro todo o liquido do meu corpo, estou desesperado, minha alma está quebrada ao meio, acho que a loucura está tomando conta do meu corpo e da minha alma.

DÉCIMA QUARTA HORA

Eu continuo chorando, meus soluços tomam conta de todo o quarto, nunca vou me recuperar disso.

DÉCIMA QUINTA HORA

Agora estou conversando com o Rafael, um amigo dos tempos de colégio que não via há muitos anos, na verdade não consigo vê-lo mas, ele está aqui falando comigo, me sinto protegido agora. Ele me disse pra eu perguntar qualquer coisa que ele me responderá. Pergunto sobre várias coisas da minha vida, e ele responde tudo exatamente como é.... parece estranho mas eu não me sinto bem com isso, ele sabendo tanto sobre mim. O Rafael começa a falar coisas terríveis de minha pessoa, atitudes que eu fiz que magoaram e feriram as pessoas, eu não sabia que tinha feito tão mal a elas, nunca foi minha intenção. Ele também está falando de atitudes que tomarei no futuro e que farão um mal pior as pessoas que conheço e que não conheço. Eu digo que é mentira e mando ele calar a boca, apesar de não enxerga-lo, sinto como se fosse um pontapé nas minhas costelas já quebradas, a dor é indescritível além de surgir outras costelas fraturadas. Apesar dos meus gritos de agonia Rafael volta a falar coisas terríveis sobre meu caráter, e o que me deixa mais aterrorizado é que lá no fundo eu sei que tudo é verdade. Ele foi embora e me deixou aqui com a alma destroçada, descobri que muita que fiz quando mais jovem foi apenas o início da desgraça na vida de muitas pessoas, estou desolado.

DÉCIMA SEXTA HORA

Agora meus pais estão aqui, também não posso vê-los, apenas estucar. Eles começam a me perguntar coisas da minha vida ou coisas que compartilhamos juntos, me sinto bem. Meu pai me pergunta se já use drogas, fico calado, então comecei a sentir uma imensa dor em todo meu corpo como se estivesse recebendo inúmeras facadas, queimaduras, fraturas, uma dor imensamente pior que minhas costelas quebradas, meus pais dizem para eu responder a pergunta. Então eu respondo que sim, e a dor para. Agora sei que se não responder as suas perguntas a dor voltará e decido não cometer de novo o mesmo erro. Mas eles perguntam coisas que eu escondia lá no fundo do meu ser, é difícil dar as respostas e, as ondas de dores bestiais continuam durante vários minutos até eu responder tudo que eles querem. Tentei mentir diante uma pergunta, eles sabem quando minto e a dor vem de novo, pior do que antes, respondo sinceramente e a dor para. Os dois se despediram e foram embora, agora além de estar com a alma destroçada e a loucura cada vez mais presente, meu corpo está quebrado.

DÉCIMA SÉTIMA HORA

Agora quem está aqui é um amigo meu de tempos atuais, não sei se fico feliz ou com mais medo ainda. Ele me pergunta como nos conhecemos e eu respondo, resumidamente. Então o inferno, novamente a dor, eu grito e peço para ele parar, ele exige que eu responda em todos os detalhes mas, é difícil pensar com todo o seu corpo sendo esmagado e partido ao meio ao mesmo tempo. Durante todo o tempo que ele ficou aqui, fui torturado de todas as formas possíveis, por não responder as suas perguntas da forma correta, agora que ele foi embora desabo em um pranto inconsolável.

DÉCIMA OITAVA HORA

Quem esteve aqui comigo agora foi a primeira garota que amei, estou cansado demais para escrever, apenas digo que o que ela fez não foi diferente do que meus pais e meus amigos fizeram. Eu não consigo mais chorar, acabaram-se as lágrimas, acho que estou prestes a morrer.

DÉCIMA NONA HORA

Eu não acredito no que está acontecendo, estou falando comigo mesmo, a minha imagem refletida na minha frente diz coisas horrorosas pra mim. Nós dois discutimos, ofensas, violência física, mas como estou em um estado deplorável é obvio que tomei uma surra do meu outro eu, socos, pontapés, não sei como ainda estou vivo. Tenho certeza que todos os meus ossos estão quebrados, todos os meus órgãos interiores destruídos, a dor que sinto é algo quase que sem explicação. Estou jogado em um canto, nem sei se realmente estou escrevendo isso, talvez sejam só meus pensamentos. O meu outro eu continua a falar atrocidades de coisas que fiz ou vou fazer, ele fala como daqui há alguns anos vou sofrer um acidente de carro e ficar em estado vegetativo, e de como eu viverei anos assim, nessa condição, apenas esperando o dia da minha morte. O meu outro eu foi embora, tomara que eu morra agora.

VIGÉSIMA HORA

Eu consegui me sentar, de repente um revólver surge na minha frente. Faz dez minutos que eu estou olhando para o revólver, eu sei o que é isso, eu desejei a minha morte e esse revólver surgiu para me ajudar mas, descubro que sou covarde e não faço isso. Agora tem uma faca na minha frente, eu a pego e como forma de me punir por não conseguir cometer o suicídio começo a me cortar, arrancar pedaços de pele, arranco uma das minhas orelhas, não sinto dor, apenas uma imensa angústia. Surgiu um alicate, com ele arranco todos os meus dentes e minhas unhas, com a faca eu tiro quase todo meu couro cabeludo, a agonia se transforma em desespero e começo a me mutilar de todas as formas que consigo. Durante toda essa hora me machuquei o máximo que consegui, sinceramente nem me preocupo mais em pensar como ainda estou vivo. Agora surgiu um enorme espelho na minha frente e o que vejo refletido é um monstro sem cabelo e com o crânio a mostra, sem dentes, o meu olho esquerdo está no chão, eu mesmo o retirei com a ajuda da faca, um liquido escuro escorre do buraco que ficou, pareço mais um defunto em estado de decomposição, o quarto todo cheira a sangue coagulado, urina e fezes. Por incrível que pareça eu vejo meu reflexo dando um sorriso.

VIGÉSIMA PRIMEIRA HORA

Deitado no chão semiconsciente, começo a escutar uma música, é um canto da igreja, cantos gregorianos, é tudo muito lindo, me sinto em paz. Não sei como mas toda a dor termina, olha para o espelho e todas as minhas feridas e machucados sumiram, a música continua e eu começo a me embalar para frente e para trás sempre olhando fixamente para a vela.

VIGÉSIMA SEGUNDA HORA

A música parou, agora quem começa a cantar sou eu, pareço cantar os mesmos cantos da igreja de antes mas, não tenho certeza, não entendo nada, apenas canto. Tirando isso, o silêncio reina absoluto dentro do quarto, não estou feliz nem triste, na verdade não sinto nada, apenas respiro.

VIGÉSIMA TERCEIRA HORA

Não canto, não faço nada, o silêncio reina absoluto, quebrado apenas pelo TIC TAC do relógio, olho para ele, vinte e três horas e trinta e três minutos que estou aqui dentro deste inferno, parece que fazem anos. Só agora começo a perceber que isso aqui tudo está chegando perto do fim.

VIGÉSIMA QUARTA HORA

O relógio para de trabalhar, uma luz muito forte dentro do quarto me cega, e alguém muito pesado fica sobre meu peito, é difícil de respirar. Parece ser um homem, porém sua voz se assemelha ao som gutural de um animal aterrador mas, ele não está zangado, parece tranquilo. Eu tenho certeza que é Deus. Ele me faz inúmeras perguntas de cinco em cinco minutos, eu não me lembro delas, só me lembro que respondo sim ou não, na verdade me lembro de apenas uma questão... todo o tempo ele fica em cima de mim me pressionando, porém nada enxergo pois a luza que emana dele me cega completamente. Até que tudo termina abruptamente como começou, ele vai embora, a luz que me cegava vai junto, o relógio começa de novo seu infernal barulho característico, TIC TAC TIC TAC... A porta do quarto se abre, eu saio para fora, nem acredito que estou em casa de novo, não sinto nenhuma dor física, meu corpo está recuperado e saudável mas minha sanidade e minha alma não. Sofri todo tipo de tortura física e psicológica, e isso é algo com o qual não consigo viver. Me lembro que meu pai esconde uma arma em cima do guarda-roupa de seu quarto. Vou até lá e, depois de procurar incessantemente eu a encontro, por algum motivo ou por uma pequena luz de sanidade acho melhor não sujar o carpete da casa com meu sangue, por isso me dirijo até o banheiro, me ajoelho dentro do box do chuveiro, coloco a arma na boca, e começo a pensar, do porquê de tudo isso, minha intenção nessa experiência macabra era de ver se podia ver ou falar com Deus, bem, eu não pude vê-lo, apenas ouvi suas perguntas, mas não lembro de nada do que me falou, com exceção de uma coisa:

-Você é feliz?

-Não.

O que significa isso, por que só me lembro dessa pergunta? Depois de meia hora ajoelhado com o cano de a nove milímetros na boca, desisto de tentar descobrir o que significou tudo o que passei e, com as últimas lágrimas que me restam a escorrer pela face, puxo o gatilho...

OITAVA HORA

Acordo assustado com o barulho de um tiro de revólver que se assemelha muito com a nove milímetros que meu pai tem. Há uma questão martelando minha cabeça, será que sou feliz? Parece que estou sobre o efeito de um tranquilizante muito forte, me sinto como se tivesse fumado maconha mas, tive um sonho muito bom, lembranças boas da minha infância dos antigos amigos, sonhei com coisas boas acontecendo comigo no futuro, estou em paz. Apesar do medo que passei até aqui, sinto que as coisas podem dar certo afinal.

Vitor de Souza Rocha.

Trabalho de Português.

Vitor de Souza Rocha
Enviado por Pri SS em 08/05/2017
Reeditado em 08/05/2017
Código do texto: T5993624
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