O diabo me deu asas, deus quebrou meus pés
Em volta dos olhos as olheiras provam que a parassonia o está matando. Os olhos injetados de sangue contrastam com as enormes rodelas arroxeadas como se o rosto fosse uma tela de Ilya Repin, sua expressão vivia em constante estado de assombro, tensão, insanidade.
- Senhor Jacob, seu café está na porta esfriando - a voz é da governanta Tarsila, uma mulher que um dia ele amou. Um dia, antes dos pássaros voltarem.
- Um minuto, pode ir embora. – ele disse com esforço, a garganta estava infeccionada, se desmanchando em purulência.
As cortinas estavam afastadas revelando uma paisagem nublada e triste, a rua permanecia afundada em silêncio, pois era domingo. Jacob detestava os domingos, podia sentir a presença da doença com mais força, podia ouvi-la sussurrando em seus ouvidos, alertando que era frágil, decrépito e que o seu tempo estava chegando ao fim. Não importava as partituras inacabadas sobre a escrivaninha no canto do quarto, ele não iria mais sentar-se ao piano, mal podia escutar.
Lá fora as primeiras gotas de chuva chegavam e batiam contra a vidraça da janela fazendo-a chorar. Os pássaros se amontavam nos fios telefônicos, inúmeras andorinhas, haviam se tornado uma praga. Seus dias se resumia a ficar na cama fitando a janela e os pássaros que o encaravam, às vezes levantavam voo apenas para que outro bando tomasse lugar. Jacob por vezes perguntava a Tarsila se aquele bando não a incomodava, se ninguém faria nada a respeita das pragas, ela dava de ombros e nada respondia, ele se sentia dominado por invisibilidade típica dos mentalmente perturbados.
O dia passou lento, embotado e doente, Jacob nunca sentira tanto tédio na vida. A noite veio, não abriu a porta para tocar no café que ficou exposto às moscas. Podia ouvir o ruído delas do lado de fora, afoitas. Quando a noite caía seus sentidos se tornavam mais aguçados, o ouvido absoluto que o tornara um músico inegualavel em outros tempos podia captar até mesmo o roçar das patas das moscas. Era incômodo, impossível. Sentia vontade de urrar, mas lembrava-se das andorinhas do lado de fora, vê-las lhe causava uma resignação sôfrega, como se observá-las lhe trouxesse algum alívio.
Dormiu por alguns minutos, o sono perturbado o fazia despertar a todo instante, não dormia mais e não conseguia manter-se desperto. “O tumor está afetando tudo, até meu juízo” pensava e tentava se conformar que a morte logo viria, era questão de tempo e de suportar esses últimos dias de desengano, mas Jacob almejava viver ao ouvir o bater das asas das andorinhas. Nessa noite, algo estranho aconteceu, uma visita inesperada, parada na penumbra do quarto, atrás da porta. O músico arregalou bem os olhos manchados de sangue, queria captar a essência daquela presença. Tarsila não pernoitava mais depois que a idade esfriou a paixão entre os dois, quem poderia ser?
Jacob tentou dizer algo, manter contato, acreditava estar sonhando ou preso num sono inquieto como já acontecera, a voz não saiu. Pensou que estava rindo, mas sentiu lágrimas molhando o rosto como se a chuva lá fora estivesse se tornando seu próprio choro. Ouviu passos, não de pés humanos, mas ciscando como as galinhas que povoaram sua infância no campo. Da penumbra um pequeno olho luziu, esperto e malicioso. Uma andorinha do tamanho de um homem adulto deu dois passos para frente e o encarou por um tempo, curiosa. Um trovão espantou os pequenos pássaros dos fios lá fora, todos voaram em desordem perdendo a noção direcional, chocaram-se contra a vidraça do quarto, os cacos explodiram como se Deus tivesse enviado um raio para destruir a casa. Jacob se encolheu, o suor empapava seu corpo por inteiro, os fios grisalhos espalhavam-se pela testa, ele chorava em desespero pedindo mentalmente para aquela criatura se afastar, desaparecer, rezando para acordar do sonho e voltar à realidade.
Uma voz suave ecoou pelo quarto e um afago lhe cobriu o corpo da cintura até o topo da cabeça, as pontas de penas roçando por inteiro gerando calafrios horríveis.
- Jacob, a vida é radiante como um raio de sol na primeira hora da manhã. A escuridão se dissipa com a chegada do grande astro, não importa quão escura seja a noite. Dias e noites pediu por isso, agarrado à sua vida, implorando mesmo quando já havia entregue os pontos. Sua noite vai chegar ao fim, um belo dia ensolarado nascerá, a questão é: você irá suportar a claridade?-
O músico tirou a cabeça do travesseiro e olhou na direção da grande cabeça de pássaro, o bico entreaberto parecia-se tanto com uma tesoura na escuridão, ele gritou, a garganta estourando em sangue, gritou para ser deixado em paz. O mundo girou e girou, Jacob sentiu-se arremessado para fora da cama. Tudo mergulhou no silêncio, o mundo não existia mais, não o que ele conhecia, antes das andorinhas.
Os primeiros raios do sol fizeram seus olhos doerem, à sua volta rostos embaçados o encaravam, perplexos. Vozes se misturavam em uma balbúrdia detestável. Entre todos ruídos reconheceu a voz de Tarsila longe, muito longe.
- Senhor Jacob, por Deus, você se jogou da janela, meu senhor, a ajuda já está a caminho, sente muita dor?-
Um raio de sol incidiu no fundo de seus olhos, agora saudáveis e livres de sangue coagulado, forçando-o a fechá-los.
- Não sinto dor, Tarsila, estou voando. –
Ao nascer do sol o bando de andorinhas voou para nunca mais retornar.