~ O Corpo
O Corpo
Ellen Mello
Ainda eram dezoito horas quando a informação chegou em casa, “nenhuma novidade” foi o que o pai de Nana disse quando abriu a porta da sala, a meia luz banhava a sala funda e cheia de espaço. Mariana, como era de fato chamada, sentou-se no sofá e suspirou, ela não tinha certeza de onde havia errado como irmã, permitindo assim que algo deste nível ocorresse. Sua mãe dormia, apenas com uso de pesados remédios, no quarto com a porta entreaberta no fim do corredor. O Senhor de meia idade puxou do bolso uma toalhinha já um pouco velha e esverdeada do bolso e esfregou a testa e os olhos, desde ontem chorava copiosamente, mas apenas quando estava sozinho, jamais na presença de Nana. Três dias sem notícias de Isabella, desaparecida em algum momento entre o horário da faculdade e o estágio que prestava a um escritório de relativo prestigio na Barra.
Mariana caminhou rumo ao quarto que dividiu com Isabella, deixou seu pai sozinho, não se orgulhava disso, mas também não suportava mais viver em um constante clima pesado e silencioso. Ela fechou a porta atrás de si e suspirou fechando os olhos, reconectava os pedaços da última vez que esteve com sua irmã, não conseguia dizer se conversaram, se apenas se olharam ou se nem se viram. A distância cresceu entre elas nos últimos anos e por isso Mariana se culpava por algo que ela sabia não ser culpa dela. Talvez não fosse culpa de ninguém. A jovem se dirigiu até a mesa de cabeceira de sua irmã, ela remexeu suas gavetas novamente, ela abriu e balançou seus livros. Nana até mesmo levantou o colchão da cama da irmã, mas não havia nada, nenhuma nota ou bilhete, nenhuma entrada em seu diário, recibo de passagem de ônibus ou avião, como em um filme de terror Isa desapareceu no ar.
Acima da cama da irmã desaparecida existia um quadro de rolha preenchido com fotos de vários momentos da vida das duas, ela particularmente retirou a foto da última vez que foram a praia juntas. Surpreendentemente já faziam dois anos. Na foto elas pareciam incrivelmente felizes, sua felicidade parecia ser inabalável, como as fotos são momentos perfeitos congelados, realmente aquele lampejo de felicidade alcançado jamais poderia ser destruído. Mariana acariciou o rosto de Isa pela foto de maneira dolorida, desde de o desaparecimento praticamente não dormia e nem participava das aulas da faculdade, mas agora, passados praticamente quatro dias, ela resolveu que seguiria em frente. Aquela jornada marcada como via-crúcis d’alma de Mariana seria então iniciada, ela partiria ainda hoje do pretório, para quem sabe um dia superar o seu calvário. Ela se deitou ali mesmo na cama de sua irmã desaparecida e ainda com a foto em mãos, finalmente dormiu.
Durante seu sono, entretanto, não conseguiu livrar-se de seu martírio, até mesmo em seu sono a casa ficava em completo silêncio, nesta representação doente de sua vida, Nana estava invisível e incapaz de se mover, congelada de pé no meio da sala, a temperatura estava tão baixa que era praticamente insuportável, mas não havia nada que pudesse ser feito, além de continuar ali parada, entre o sofrimento e a confusão Mariana conseguiu distinguir a figura de Isa sentada no chão, naquele momento seu coração estremeceu, ela não podia se aproximar da irmã, ela não conseguia e nem sabia como, seus olhos chegaram a ponto de doer por não conseguir liberar nem uma lágrima se quer. Isa olhava fixamente para a parede vazia, a sala estava em profunda penumbra e as janelas pareciam ter sido fechadas com tijolos, no total isolamento e na semiescuridão Isa abraçou as pernas sentada no chão, uma espécie de ruído ecoava de maneira bem leve no cômodo, tudo parecia tão extremo e desconfortável, Nana sentia-se torturada por sua própria mente, assombrada pelas memórias fantasmas do passado falho de sua família, atormentada por uma Isa que não conseguia enxerga-la e parecia completamente alheia a qualquer coisa. “Que tipo de perversão seria essa? Pensava Mariana, enquanto observava, em um momento de calma ela foi capaz de identificar o ruído de fundo, era uma memória de uma conversa que teve com Isa, logo no início de suas aulas de anatomia, ela já havia perdido o início da conversa, mas conseguiu entender “ a maior parte dos corpos são de indigentes, as pessoas não costumam doar seu corpo para estudo...”. Nana então entendeu que aquilo se tratava de uma memória distorcida já que teria aula de anatomia no dia seguinte, ela estava começando a despertar de seu sonho doentio, mas não antes de perceber uma mudança na temperatura da sala, agora se tornava um ambiente muito mais acolhedor, o frio desaparecia aos poucos, Isa se levantou abruptamente em algum momento, ela correu até a parede e as tocou esticando os dedos, reflexos de luzes dançavam como se fossem pinceladas em tela, aos poucos mudavam de cor, aos poucos piscavam, até mesmo Mariana ficou maravilhada. Ela se virou procurando a origem da luz, uma única janela não coberta de tijolos, porém fechada, como se alguém fora da casa segurasse uma lanterna. A luz então se apagou, Nana correu para a porta, queria interceptar aquele que segurava a lanterna, ela tocou a maçaneta fria e girou lentamente, mas quando ouviu o som do destravar, abriu os olhos e estava em seu quarto novamente.
Ela se sentou na cama assustada, mas não sabia direito com o que, tentava, mas não conseguia se recordar do sonho, apenas se lembrava de observar luzes em uma parede vazia, nada além do sentimento de confusão mesclado com fascínio, ela se virou para o lado e a fotografia que segurou na noite anterior estava caída no chão. Nana tomou-a em suas mãos frias e a pôs novamente no quadro. Já estava quase na hora do ônibus universitário passar em seu bairro.
Não era muito tempo mais tarde naquele dia, quando Mariana chegou na faculdade, levando sua vida no máximo da normalidade que conseguiria, ela saiu de casa sem falar com seu pai e sem ver sua mãe, simplesmente não era mais possível encontrar com eles, tão destruídos, desfigurados. Nana engoliu a seco e fingia estar bem, conversou sobre futilidades com sua amiga, conversas superficiais e que não conseguiam distrai-la de seu sofrimento. Em um dado momento enquanto ela e suas colegas se dirigiam até o laboratório de anatomia, uma delas perguntou “você acha que sua irmã está apenas esfriando a cabeça e vai aparecer a qualquer momento? Ela pode realmente estar só com algum cara em algum lugar...” Mariana tentou não se perturbar muito com o tópico e até mesmo pensar naquela ideia com carinho a deixava um pouco mais tranquila, “Eu acredito que sim, ela pode aparecer hoje mesmo lá em casa como se nada tivesse acontecido” ela mentiu o máximo que pode naquela frase, não para suas colegas, mas sim para ela mesma. Chegadas no laboratório, após alguns minutos do professor falar algo que ela foi impedida pela conversa paralela dos colegas de compreender, ela finalmente entendeu. Chegou uma nova “espécime” para estudo, uma jovem que se afogou apenas alguns dias antes, não levou muito tempo, após o choque, para Mariana informar que ela reconheceu a quem pertencia o corpo.