PRESO SÓ POR UMA NOITE

PRESO SÓ POR UMA NOITE

Eu morava numa pacata cidade do interior do Baixo Sul da Bahia. Nela fui exercer como servidor público estadual a função de Técnico Agrimensor. Tinha muito pouco tempo de formado e fui transferido por indisciplina, de uma pequena cidade interiorana pra outra do mesmo porte.

Jovem no verdor dos vinte e poucos anos, ainda imaturo, com pendor pra jogar bola, pra literatura, pra namorar, pra beber, pra fumar, pra viver a vida desregrada... Mas também pra começar a ter as responsabilidades profissionais, formar o bom caráter, adquirir a boa conduta, idealizar um futuro promissor.

A cidadezinha oferecia aos seus moradores quase nenhuma opção de lazer. A maior concentração de gente era no campo de futebol da cidade, geralmente nos fins de semana, quando se promoviam os campeonatos locais e os torneios que incluíam as cidades circunvizinhas.

Fora isso, era buscar divertir-se numa ou noutra pequena boate, nos muitos pequenos bares espalhados por todo o perímetro urbano, ou nos bordéis situados na periferia. Propenso a vivenciar esses lazeres por instinto e insubordinação mental, enveredei por esses excessos mundanos que me causaram alguns embaraços por má conduta social.

Um destes episódios grotescos conto agora, que foi pra mim, tão inusitado quanto angustiante. Antes de começar a contá-lo, entretanto, falo do aspecto bucólico da pacata cidade, toda rodeada pela natureza campesina, através das pastarias, das roças de cacau, das árvores de lei, das árvores frutíferas, do gado pastando, dos vaqueiros ordenhando, dos animais com os panacuns cheios de cacau mole, tangidos pelo peão de roça levando-o até o coxo pra ser fermentado, antes de submetê-lo à secagem ao sol ou em estufas fabricadas pra este fim. E tudo isso vivenciei também em minha profissão em sua parte prática. Foram momentos maravilhosos de harmonia com a natureza campestre e com a gente simples jamais esquecidos por mim.

Agora, vou à sequência da narrativa que trata do tal episódio. O meu serviço era desenvolvido tanto no escritório quanto no campo. Quando ia pro campo demarcar as terras, cuja finalidade era a legalização fundiária, acampava em equipe de oito a quinze dias. Quando voltava dos serviços práticos, ficava no escritório fazendo cálculos, preenchendo dados e cuidando de toda parte teórica e burocrática, que, uma vez concluída, deveria ser encaminhada à Coordenadoria Regional.

Durante a semana, quando acabava o expediente, eu tinha o hábito de passar em casa, trocar de roupa e ir bater o baba no peladão, o campo de futebol da cidade, localizado em sua parte alta. Findo o jogo, quase às escuras, ao invés de voltar pra casa, me juntava a alguns amigos pra nos divertirmos em algum bar. E, às vezes, fazia isso sozinho. Trabalhava até o meio-dia de sábado. Daí em diante, era farra pesada que se prolongava até a alta madrugada de domingo.

Ainda não era casado. Só namorava. Mas me ocorria de sumir casualmente, entocado em algum canto, por isso, me esquecia de vê a namorada. Depois, passada a farra e a ressaca, muito envergonhado, reaparecia pra vê-la com alguma justificativa que pudesse, pelo menos, amenizar a minha ausência, a minha falta de consideração para com ela.

Apesar do pendor às farras com os amigos, que, aliás, alguns, eram meus colegas de trabalho e nativos da cidade, eu também tinha os meus momentos de recolhimento, às vezes dedicados à leitura e escrita literária; também viajava pra visitar os meus parentes; ou então, me ocupava em namorar, tanto durante a semana como no fim de semana, pra compensar as ausências costumeiras do convívio com a namorada.

Somente três pequenos hotéis na cidade prestavam serviços a quem chegasse de fora à procura de hospedagem. Num desses, eu me hospedei logo que cheguei e nele permaneci por algum tempo. Nos outros, apenas tive passagens rápidas, pra fazer alguma refeição, pra resolver algum assunto, ou jogar cartas com os amigos em algum feriado ou no fim de semana, quando então, podíamos bebericar ou comprazer-se com alguns petiscos.

Eu havia bebido muito no sábado. Bebi tanto, que nem me lembrava de como tinha chegado em casa. Acordei ressaquiado. Me achando indisposto, não quis tomar café. Andei um pouco pela casa. Me sentia zonzo. Voltei pra cama. Me deitei e dormi de novo.

Quando novamente despertei, olhei o relógio e eram quase dez horas da manhã. Me sentia um pouco melhor. Mas ainda havia um resquício de ressaca. Bati um suco de laranja com leite, fiz um sanduiche e me alimentei. Tomei um banho e troquei de roupa. Não queria ficar em casa. Queria aproveitar o meio dia e pouco do domingo pra me divertir. Quando abri a porta da frente da casa, me deparei com uma linda manhã ensolarada. Fechei a porta e saí contente em busca de algum lazer que me agradasse.

No trajeto, encontrei com alguns amigos e juntos fomos a um dos hotéis, que ficava na mesma rua do escritório onde eu trabalhava na área central da cidade. O dono dele era irmão de um desses meus amigos. Porém, quem assumia a sua direção era a sua esposa, uma mulher de meia-idade, alegre, bem-humorada e que parecia viver sempre de bem com a vida.

O apelido dela era Pretinha. Todos a chamavam assim. Em nosso meio social, quando alguém desde cedo é chamado pelo apelido, quase ninguém o chama pelo nome, e a maioria não lhe sabe o nome real. Eu mesmo não lhe sabia o nome de batismo. O hotel não era grande, como os grandes hotéis das médias e grandes cidades. Não tinha nenhum pavimento, só a parte térrea. Todavia era uma ampla casa, como convém a um hotel, mesmo de pequeno porte. Tinha seis quartos, uma sala espaçosa, uma ampla copa e cozinha conjugdas, não tinha suíte, mas tinha dois banheiros enormes e mais uma área de serviço.

Não ia nele com frequência. Ia ali de vez em quando, influenciado pelos amigos pra papear, jogar cartas e bebericar. Quando chegávamos, os proprietários vinham logo nos receber com muita alegria e já sabiam o objetivo de nossa visita. De imediato nos levava pro fundo da casa. Sentávamos numa grande mesa. Pretinha, então, pegava o baralho e o colocava no centro dela. A partir daí, em meio ao consumo de bebidas, petiscos e a algazarra do jogo, o tempo ia passando, lentamente passando sem que o percebêssemos.

Nesse período, o banheiro foi visitado inúmeras vezes. À medida que bebíamos, mais cerveja do que outra bebida, o tempo de urinar diminuía, e a todo instante o banheiro era visitado pelos biriteiros de plantão. Logo que cheguei, ainda me sentia meio enjoado, com algum indício de ressaca. Só depois que entrei em campo ou molhei a palavra, foi que a ressaca sumiu, ou melhor, se recolheu no organismo.

Eram mais ou menos cinco horas da tarde. Alguns amigos já tinham ido embora devido ao visível estado de embriaguês. Só os insistentes, os que saíam no cisco da farra, os que, como eu, mesmo embriagados, ali permaneciam, dali não arredavam o pé. Pretinha foi descansar um pouco em seus aposentos. Na mesa, ficaram apenas eu e mais dois amigos. A risadaria diminuiu bastante. O ambiente quase silenciou.

Me deu mais uma vontade de urinar. Acho que a vontade era mais do que isso. Fechei a porta, não sei como, mas fechei. Ao invés de ficar em pé ante o vaso, mesmo oscilando, pela visível embriaguez, me sentei nele.

Só me lembro do que ocorreu até este momento, o de me sentar no vaso. Ao entrar, não cuidei em acender a luz. Como ainda era dia, o recinto, mesmo fechado, ficou na penumbra. Meu corpo estava anestesiado pela forte ingestão de álcool. Não sei quanto tempo dormi, sentado naquela posição incômoda. Ninguém, pelo visto, bateu na porta, pra saber se tinha alguém lá dentro. Lá pras tantas da madrugada, creio, acordei.

Zonzo, a cabeça pesada, sem saber onde estava, sem saber o que me havia ocorrido, quando abri os olhos, me desesperei, pois não vi nada, nenhuma réstia de luz. Fechava os olhos, pra pensar, pra tentar ordenar as ideias, pra saber onde estava e o que fazia ali naquele local desconhecido. Inútil. Entorpecido pelo álcool, não conseguia pensar, voltar a minha lucidez.

Mesmo no escuro, tentei me levantar e fui andando de um lado pra outro, tentando tocar em alguma coisa. Em dado momento, senti a parede fria. Me deu vontade de vomitar. As pernas tremiam. Acabei por cair. Me arrastei até me encostar na parede. Ali mesmo vomitei bastante. Fiquei quieto por algum tempo. Com muito esforço, me levantei de novo. Tateei as paredes, de um lado e de outro, e não conseguia saber onde estava.

Muito cansado, me sentei novamente. Me recostei na parede. Ao sentir a sua frieza, a única ideia que me ocorreu, foi de está numa prisão. Pensando assim, o desespero aumentou. Mas não conseguia falar, gritar, nem me mover. Por fim, adormeci com uma pergunta martelando a consciênia debilitada: o que tinha feito de errado pra está preso?

Em sonho, me via numa prisão escura. Gritava, gritava e ninguém me ouvia. De repente, vi uma luz ao longe que foi se aproximando de mim. Em seguida, alguém bateu na porta e perguntou:

- Quem está aí?

Já desperto, me vi sentado, recostado na parede junto ao vaso sanitário. Uma voz de mulher bateu na porta e perguntou de novo:

- Quem está aí?

Me levantei e abri a porta. Quando Pretinha me viu, não acreditou no que tinha ocorrido.

- Meu amigo, você dormiu aí trancado?

- Sim, Pretinha, infelizmente.

- Você está vendo o que o vício da bebida faz?

Eu, envergonhado, só fiz balançar a cabeça, desapontado comigo mesmo. E ela me aconselhou:

- Você bebe muito. Precisa beber menos. Se não controlar esse jeito irresponsável de beber, coisas mais graves poderão lhe acontecer. Pense nisso.

Depois, com o seu jeito alegre e bem-humorado de ser, botou a mão no meu ombro e me disse:

- Ainda bem que ficou preso, mesmo no banheiro, só por uma noite.

Olhei pra ela, sorri sem graça, lhe pedi desculpa e fui embora.

Escritor Adilson Fontoura

e-mail: adilsonfontoura9@gmail.com

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Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 12/02/2017
Reeditado em 15/10/2021
Código do texto: T5910535
Classificação de conteúdo: seguro
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