O FANTASMA
O FANTASMA
- Bom dia, amigo! Peço-lhe licença pra sentar-me aqui também.
O desconhecido não me dizia nada. Continuava imóvel, sentado num dos bancos da orla da praia, de pernas cruzadas, trajando camiseta, bermuda, tênis e mais o boné. O homem fumava e olhava abstraído pro mar.
Eu costumava acordar bem cedinho pra correr na praia da avenida, aproveitando o sol morno e a brisa fresca do início da manhã. Percorria o trajeto de ida, depois voltava e me deparava com aquele homem na mesma posição, estático, com olhar esquisito pro mar.
Costumava me sentar naquele banco, porque era o primeiro no sentido de ida e o último no sentido de volta. Me habituei a me sentar ali por causa deste detalhe. Por ser ainda cedo, bem poucas pessoas se movimentavam pela orla. Só mesmo quem estava disposto a malhar.
No começo, o banco estava sempre vazio. Eu ficava à vontade sentado nele. Enquanto descansava, com o coração um tanto acelerado e o suor do corpo pingando no chão, ia tomando água fresca aos poucos, repondo a que perdia pelo exercício físico.
De repente, passei a conviver com a presença estranha daquele homem calado, que não mudava de traje, que não descruzava as pernas, que continuava olhando fixamente pro mar. Só um gesto lhe alterava a rotina existencial: tirar o cigarro da boca, entre uma tragada e outra, descansando-o preso nos dedos amarelecidos pela nicotina, quando a mão ocupada era colocada sobre a outra de forma cruzada, imitando o cruzamento das pernas.
No banco, cabiam três pessoas. Não me incomodava o fato dele está ali sentado. O que me chateava e achava estranho era o seu jeito silencioso de ser. O mesmo traje todos os dias. A sua falta de gestos. A sua melancolia doentia. A sua indiferença às coisas que o cercam. Tudo isso me intrigava. E pensava: quem era aquele homem, o que fazia ali, o que lhe teria ocorrido?
Sempre pontual pra iniciar a minha corrida, chegava às seis horas da manhã. Ele já estava lá, do mesmo jeito. Ia, vinha, e ele lá, sentado no mesmo banco, na mesma posição, com as mesmas roupas, fumando cigarro, sem olhar, nem pra um lado, nem pra outro, apenas com os olhos fascinados na direção do mar.
Nem mais o cumprimentava quando parava de correr. Já havia me acostumado com a sua presença calada. De vez em quando, olhava-o de soslaio. Alheio às coisas, é provável que nem me percebesse ali junto dele. Ou, se percebia, nada me dizia.
Resolvi mudar o horário pra malhar. Imaginei que, com a mudança, ele não estivesse mais ali. Passei a correr a partir das cinco horas da tarde. Não adiantou. Assim que cheguei, me deparei com a mesma situação. Parecia que ele não arredava o pé dali. Por está perdendo a vontade de correr, devido aquele mistério existencial que não sabia como esclarecer, imaginei que, correndo de noite, não mais o encontraria ali. Pra minha desagradável surpresa, o estranho homem permanecia no mesmo lugar.
Voltei a correr de manhã, uma vez que, em qualquer horário, ia tê-lo antes os meus olhos encabulados. Aquele homem não falava nem comigo nem com ninguém. Não sabia de onde ele vinha. Nem quando chegava, nem quando partia. A única certeza era de vê-lo todo tempo ali, como se a sua pobre vida se resumisse naquele pequeno espaço ao ar livre, na beira da praia, de manhã, de tarde, de noite, sentado no banco, fumando um cigarro após o outro, como se uma parte do tempo o fizesse parar ali, sem dar-lhe direito de seguir com os seus objetivos de vida.
Não adiantava puxar conversa com ele. Também temia tocá-lo. Às vezes, jogava algum objeto em sua frente, ali perto na areia, esperançoso de que ele saísse da imobilidade, do transe hipnótico, do seu alheamento existencial. Em vão. Nada lhe fazia alterar a rotina.
Foi quando tive a ideia de dá plantão ali mesmo, pelo menos por uns dias, tão curioso em saber se podia, de algum modo, tentar decifrar aquele enigma que parecia não incomodar ninguém, só a mim. Comprei uma barraca e fiquei ali bem perto acampado, dia e noite, noite e dia, à espera de que algo de novo pudesse lhe ocorrer.
Deixei de correr. Faltei ao trabalho. Não ia mais em casa. Comprei algumas coisas pra me alimentar ali mesmo. Tomava um breve banho num quiosque perto dali, quando a tarde caía e o sol se punha no horizonte, gerando a beleza do ocaso, só pra não perder de vista a tétrica imagem do homem, que continuava imóvel sentado no banco.
Eu não dormia. Ficava vinte e quatro horas com os olhos arregalados. Só dava pequenos cochilos. E realmente pude observar que ele não saía dali. As pessoas passavam e não lhe percebiam a presença. Deduzi então, que só eu o via. Seria eu, um vidente, uma pessoa que vê fantasma, ou alma do outro mundo?
Era alta madrugada. A orla estava deserta. O homem continuava imóvel sentado no banco, com as mesmas roupas e as pernas cruzadas. Não parava de fumar. Não sabia como conseguia tanto cigarro, se não saía dali pra comprar uma nova carteira.
De súbito, um forte calafrio me percorreu todo o corpo. Me arrepiei da cabeça aos pés. Estaria pegando um resfriado, pensei. Não queria tirar os olhos do desconhecido. Entrei rápido na barraca e voltei agasalhado num cobertor. A minha função era vigiá-lo sem cessar. Mas o sono se apoderou de mim. Fechei os olhos. Comecei a sonhar. Com os olhos perispirituais abertos, vi, enfim, o homem levantar-se do banco. Veio lento em minha direção e me disse:
- Agora que você já sabe que eu sou um fantasma, vou lhe dizer como morri. Há dois anos eu passava por aqui pela orla e me deu vontade de tomar um banho de mar. Estava embriagado. Quando entrei na água, fui avançando sem perceber a profundidade. Em dado instante, tentei voltar e fui acometido de forte cãibra nas duas pernas. Não resisti e morri afogado.
- E por que eu fico te vendo todos os dias do mesmo jeito sentado no banco?
- Você é um médium vidente. O que você vê, não é o meu corpo físico, é uma cópia perispiritual dele. A minha alma já está desencarnada. Fico ali sentado no banco, porque foi ali que decidi entrar no mar. É como se eu tivesse vivenciando ali, os últimos instantes de vida carnal que interrompi inesperadamente. Mas tenho provas a cumprir também no fundo do mar.
Dizendo isso, o fantasma se despediu de mim e adentrou no mar, imergindo rápido em suas águas em meio a noite enluarada. Quando acordei no outro dia bem cedinho, me lembrei logo do sonho. Olhei de imediato pro banco e não vi mais o homem desconhecido sentado nele.
Escritor Adilson Fontoura
e-mail: aafontoura@hotmail.com.br
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