BEM VINDOS À ILUCRI
Era para ser um dia igual a todos os demais. O despertador tocou, acordei, pulei da cama, dirigi-me ao pequeno banheiro do meu flat, lavei o rosto e escovei os dentes. Já bem desperto, comi uma pera e um sanduíche preparado com fatias de queijo e bolachas cream-crackers. Bebi um copo de iogurte. Voltei ao banheiro e nova higiene bucal. Tomei uma rápida ducha. Arrumei-me com o esmero de costume, peguei minha maleta sobre a mesinha e fui até o elevador. Ele estava subindo. Seguiria até os andares mais elevados do prédio. Que droga! Teria de esperar bastante até ele retornar. Enquanto isso, no celular, dei uma espiada nas principais notícias do dia. Finalmente, o elevador chegou. Entrei, estava vazio, apertei o botão que o direcionava para o pavimento térreo. Na descida, estranhei o ruído emitido por aquela geringonça. Parecia que não azeitonavam suas engrenagens há muito tempo. Comentaria com o porteiro.
O elevador estacionou, o painel indicava a letra T, a porta abriu-se e percebi uma intensa luminosidade proveniente do exterior. Dei dois passos para fora. Jamais a recepção do prédio estivera tão iluminada. Eu sentia algo diferente embaixo de meus pés. Não era aquele piso duro, de granito, ao qual já me habituara. Eu pisava em areia. Onde estava a bancada da recepção? E o porteiro, que fim levara? E a bela fachada de vidro do prédio, cadê ela? Tudo desaparecera. Eu só via areia à minha frente. Dunas e mais dunas. Encontrava-me diante de um deserto. Tentei voltar em direção ao elevador. Onde está o elevador que me trouxera àquele esdrúxulo pavimento? Também sumira, evaporara. Era só areia ao meu redor. Que loucura era aquela? Será que eu estava sonhando? Belisquei-me. A princípio, parecia que eu me encontrava acordado. Seria alguma pegadinha, dessas que assistimos nos programas de televisão?
Permanecer ali, parado, não seria uma boa alternativa. Decidi caminhar, mas em qual direção? Não fazia a menor ideia. Qualquer direção serviria. Que calor insuportável! Tirei a gravata e o paletó. Abri alguns botões da camisa, arregacei as calças e fui em frente. Ao longe, percebi algo se movendo sobre uma montanha de areia. Não era miragem, era bem real. Vários camelos, possivelmente uns dez, seguiam enfileirados, montados por homens, talvez mulheres. À distância, era impossível distinguir. Outras pessoas caminhavam, ladeando os animais. Camelos?! Certamente, eu estaria sofrendo de graves alucinações. Onde já se viu caravana de camelos em meu país? De qualquer forma, sem outra opção, andei na direção da tal caravana. Procurei apressar os passos, mas não era fácil. Os pés afundavam na areia e faltava-me o ar.
Eles também me viram. Pararam. Três pessoas destacaram-se do grupo e vieram em minha direção. Cada vez mais próximas. Começaram a gritar para mim. Não conseguia entender qualquer palavra do que elas falavam. Além de minha língua natal, eu dominava o inglês e o espanhol. Arranhava no francês, no alemão e no chinês. Porém, a língua delas era outra. Pelos trajes, deveriam ser árabes, ou qualquer coisa semelhante. Usavam túnicas e tinham as cabeças cobertas. Eram três homens, bem morenos, com bigode e barba. Acercaram-se de mim, falavam e gesticulavam. Tentei me fazer entender nas seis línguas que conhecia. Nenhum resultado. Creio que eu deveria ter aprendido os dialetos marcianos.
Um deles, o mais velho, que parecia chefiar os demais, pegou-me pelo braço e fez sinal que o seguisse. Não opus resistência. Junto aos camelos, ofereceram-me água. Tinha um sabor horrível, pesada, mas minha sede era grande e eu deixei aquele líquido escorregar pela goela abaixo. Trouxeram-me uma túnica, parecida com a que usavam, e, através da mímica, mostraram que eu deveria vesti-la. Assim o fiz. Um rapaz do grupo vestiu o meu paletó e amarrou a gravata em seu turbante, o que arrancou muitas gargalhadas de todos. Eu gostaria de ter entendido a piada, mas fazer o quê?
Segui com o grupo, caminhando ao lado dos camelos, como a maioria. Montados iam algumas mulheres com crianças, idosos e homens emagrecidos, pareciam enfermos. Acampamos ao anoitecer. Percebia-se que, ao redor da fogueira, comentavam a meu respeito. Como eu gostaria de compreender o que falavam. O homem de barba grisalha, o comandante da caravana, veio até mim, batia no peito e repetia: Faruk, Faruk. Entendi que este era seu nome. Apresentei-me também. Fiz o mesmo gesto que ele e falei: Leandro, Leandro. Ele apontou para mim e perguntou: Leandro? Assenti com a cabeça. Faruk continuou gesticulando. Interpretei que, mais à frente, encontraríamos uma cidade ou povoado. Ele fazia sinais de que eu deveria me comportar como um surdo-mudo. Caso desconfiassem de mim, poderiam me cortar a cabeça. Um frio correu pela minha espinha. Como eu vim parar ali? Agora, segundo a mímica de Faruk, eu ainda estava correndo risco de vida. Todavia, o jeito era descansar e, no dia seguinte, continuar a marcha, junto com a caravana.
Com a alvorada, levantamos e seguimos viagem. A tarde começava a cair, quando avistamos a tal cidade. Rochas começaram a aparecer, aqui e acolá. Casebres feitos de barro batido misturado com pedras surgiam pouco a pouco. Pessoas humildes, à frente das habitações. Chegamos ao muro que cercava a cidade. Uma enorme porta de madeira e ferro, iluminada por archotes presos ao paredão. Vários homens circulavam por ali, fardados. Eu estava dentro de um filme épico, só poderia ser isso. Os homens trajavam-se como soldados da Roma antiga, do tempo dos césares. A caravana foi minuciosamente revistada. Dois soldados também me revistaram, faziam perguntas. Eu reconheci alguns termos que falavam. Era latim! Portei-me como Faruk sugerira. Eu era um surdo-mudo. Confiscaram minha maleta, e meu relógio de pulso. Após meia hora, a porta abriu-se e a caravana teve permissão para entrar na cidade. Seguimos para um enorme acampamento, à beira de um lago, lagoa, talvez um golfo, onde já havia centenas de pessoas misturadas com dezenas de camelos, ovelhas e cães. O odor dos excrementos dos animais era repugnante. Uma sujeira de dar desgosto. Entretanto, os presentes pareciam habituados com tal situação. Notei que nem todos falavam a mesma língua dos integrantes da caravana que me acolhera. Pelo menos três línguas diferentes eram empregadas naquele acampamento. Apesar do desconforto e das diferenças linguísticas, o clima era de confraternização. Trocavam alimentos, utensílios e roupas entre si. Seria uma feira noturna? Não! Pareciam se presentear mutuamente. Que lugar seria aquele? Não havia luz elétrica, os militares usavam espadas e lanças. Será que eu teria viajado no tempo?
Na manhã seguinte, serviram-me um pão horroroso, duro, produzido, certamente, sem fermento. Percebi que o molhavam no azeite. Imitei-os. Ficou mais fácil de deglutir. O som de uma trombeta se fez ouvir. Todos se levantaram, deixaram seus pertences e correram para as margens do lago. Que lago enorme! Perdia-se de vista. Não consegui ver Faruk e os membros da caravana. Eles já deveriam ter seguido para o lago. Acompanhei a multidão. Sentaram-se no chão, formando uma meia lua, diante de uma figueira onde, sob sua sombra, sobre uma pedra, encontrava-se um homem de túnica azul e manto branco. Pele morena, queimada de sol, cabelos, barba e olhos castanhos escuros. Ao seu lado, alguns outros homens e duas mulheres. Sua fisionomia era serena, transmitia absoluta tranquilidade. Após todos se acomodarem, ele começou a falar. Não havia aparelhagem de som, nem ao menos um megafone, mas sua voz era forte, alcançava cada um dos ouvintes. Ele empregava uma daquelas línguas falada no acampamento. Eu não conhecia uma palavra sequer, porém entendia, com perfeição, sua mensagem. Que fenômeno estranho.
O homem falava de paz, de amor entre os seres humanos, de respeito aos animais e à natureza, como um todo. Advertia que, se vivêssemos em guerras e destruíssemos o ambiente que nos cerca, em pouco tempo, não seria mais possível sobrevivermos. O homem seria extinto. E os culpados haveriam de pagar. Cada palavra que saía de sua boca soava como um alento, um bálsamo para os doentes, para os fracos, para os pobres e para todos que necessitavam de algum consolo. Ele falava com a autoridade de um híbrido de cientista com sacerdote. Quem seria aquele homem?
Ao terminar, formou-se uma enorme fila até ele. Um por um, os enfermos eram tocados por suas mãos e, miraculosamente, pareciam se recuperar. Eu estaria diante de Jesus de Nazaré?! Ou seria um de seus apóstolos? Fiquei parado, extasiado, observando o desenrolar dos fatos. Creio que se passaram mais de cinco horas, contando com a palestra e com a sessão de milagres. O povo retornava para o acampamento. Alguns pegavam seus animais e seguiam viagem. Vi a caravana de Faruk se pondo em marcha. Eles acenaram para mim. Respondi à gentileza. Um casal aproximou-se. Ambos, homem e mulher, começaram a falar comigo. Como não entendia, continuei bancando o surdo-mudo. Eles pegaram-me pelos braços e levaram-me para o final da fila. Tentei me desvencilhar, mas foi em vão. Estavam decididos a curar minha surdo-mudez.
Havia menos de trinta pessoas na minha frente. Demorou pouco mais de vinte minutos para chegar a minha vez. Como os demais, ajoelhei-me em frente ao homem milagreiro. Ele tocou-me a cabeça e disse: “Sei quem és, sei de onde vieste e de quando vieste. Sei do que precisas. Vai, segue teu caminho, leva minha mensagem aos teus e terás o que pedires.”. Ele não falava minha língua, nem as línguas conhecidas por mim, mas suas palavras eram tão claras. Levantei-me, agradeci àquele homem e ao casal que me trouxera diante dele. Estranhamente, o casal conseguia compreender minhas palavras.
Voltei ao acampamento e, exausto, adormeci no chão imundo. Quando acordei, estava sozinho, no elevador da empresa onde trabalhava, subindo até o andar da diretoria. Todos estranharam ao me ver naqueles trajes. Túnica de linho grosseiro, turbante da mesma cor, ambos sujos, fedorentos e amarrotados. Aproveitei para pedir minha demissão. Hoje, sou pastor desta igreja que fundei, a Igreja da Luz de Cristo (ILUCRI). Sejam bem vindos!