VISTA AO MAR

Santos - SP. Ano de 1987, linda manhã de verão. Com seus infinitos jatos de intensa luz abrindo aquela sexta-feira, o Astro Rei iluminou o que restou do fusco daquela madrugada. Brilhante, forte e dourado ascendeu lentamente no horizonte, prometendo presentear com um calor especial o mar e os lindos jardins que adornam as nossas belíssimas praias, favorecendo assim os habitantes e os sempre bem-vindos visitantes de nossa cidade.

Ainda de ressaca, acordei com o eco do estridente toque metálico do meu velho despertador. Coitada de minha cabeça. "Oh meu D'us!", pensei. Como o de costume estava atrasado. Lamentando muito os líquidos profanos que ingeri na madrugada, corri para o banheiro e fiz só o básico: Esvaziei a bexiga e tomei um banho de gato, logo pulei dentro das calças escovando os dentes.

Sentado no chão do lento elevador afivelei a cinta, vesti a camisa e calcei os velhos sapatos. Olhando o espelho, assustado ajeitei os cabelos.

Na garagem sentei ao volante do meu velho possante e zumm, saí como um louco em disparada. Correndo contra o relógio e costurando a "milhão", venci algumas barreiras em trânsito. Na 'roleta russa' cruzei os envergonhados semáforos à minha frente. Já abrindo a porta, freei e não acreditei: "Ufa!!! Cheguei!" Caminhando às pressas mirei no pulso e, caraca, mais uma vez chegaria atrasado na empresa.

Como de costume, fui para a copa ao encontro de meus colegas de trabalho e ali tomar um café fresco e, quem sabe, comer algumas bolachas. Ali também ficaria sabendo das fofocas e novidades pelo pessoal mais bem informado. Entre um gole e outro, soube que o superintendente estava recebendo uma comitiva de técnicos de nossa empresa, lá da região de Presidente Prudente. Estavam ali para conhecer um sistema telemétrico recém-implantado pelo nosso departamento técnico numa das cidades da Baixada Santista.

Através do coordenador de meu departamento, fui apresentado a um dos muitos técnicos dessa comitiva - o engenheiro Walter Yamahei.

Após os cumprimentos, foi-me dito que ele, a fim de conhecer todas as etapas do projeto e instalações, me acompanharia a alguns dos locais de funcionametos de alguns equipamentos de transmissão, controle e monitoramento dos processos daquela região.

Acostumado a lidar com técnicos, de cara tive uma boa impressão desse técnico japonês: um tremendo bonachão, próximo dos 25 anos.

Com o coordenador traçamos um roteiro lógico para podermos passar o maior número de informações a ele. Com o seu retorno marcado para o dia seguinte, ele só teria aquele dia para assimilar “in loco" e, talvez iniciar um projeto em sua região.

Lá pelas 09:00 horas, nos preparando para pegar uma das viaturas da unidade, quase prontos para sair, meio sem jeito ele me perguntou:

- " Senhor Roberto, me desculpe a pergunta, o mar fica muito longe daqui?"

“Hum!!" - Pensei: "Quem já viu o mar uma vez não mais pergunta por ele e sim pelas praias. Aposto que esse é um daqueles que nunca viu e está querendo”

Parei o que estava fazendo, olhei para ele e, quase rindo, enrolei:

- "Depende do que você entende por longe!"

- "Como assim?" - disse ele, olhando estranhamente para mim.

- "A nossa região é toda banhada por ele. Para nós, Santistas, ele sempre nos parece muito perto!"

Apesar dele disfarçar muito bem e não querer parecer ignorante na minha frente, percebi saltar uma faísca de ansiedade em seu semblante. Naquele instante tive a certeza de que, ou ele nunca havia visto o mar, ou o havia esquecido. - o que para mim é impossível. Nascido, criado e vivido no litoral, por ter visto muitas vezes isso acontecer, conheço bem a forte emoção sentida por alguém que pela primeira vez avista a imensidão oceânica.

Querendo me divertir um pouco, resolvi levá-lo ao limite de sua ansiedade antes de pensar em deixá-lo vislumbrar o mar.

Até pareceu sacanagem, mas, não... A minha intenção foi impor-lhe um ritual. Gostaria que ele jamais esquecesse aquela forte emoção que estava porvir, aquele momento, único em sua vida, o qual levaria guardado em sua memória para o resto de sua existência.

Quase desistindo de perguntar, já saindo pela tangente, com aquele sotaque carregado do cafundó do interiorzão paulista, ele comentou sorrindo:

- "Sorte de vocês que moram nesta linda cidade e, ainda por cima, com o mar bem à frente, deve ser muito legal".

Desconfiando de que ele até já soubesse de minhas intenções, abri-lhe o jogo..., mas só um pouco.

- "Walter, diga-me com sinceridade: Você alguma vez já viu o mar, mesmo?".

Mostrando aquela esperteza característica do pessoal interiorano, ele me respondeu:

- "Ô sô, claro que já vi, xiii..., muitas vezes!".

- "Que bom, e ai, gostou?".

-"Claro que sim, mas eu gostei mais lá do nordeste, as águas são bem mais limpas" - Embromou.

-"Certamente, mas as praias daqui também são muito legais, precisas ver e sentir!".

-"Eu sei, gostaria muito!

Eu continuei ali, perguntando sobre os seus conhecimentos marítimos e o coitado tentava mudar de assunto. Eu insistia, não iria deixar esse caipira me tirar uma onda dentro da minha praia. Isso já seria demais!!!

A coisa foi se desenrolando de tal maneira que ele estava quase surtando, mas o caipira não dava o braço á torcer de jeito nenhum.

A fim de terminar logo com aquilo, resolvi tentar dar-lhe um xeque-mate e acabar de vez com o seu estresse, afinal, ele estava ali para conhecer as unidades e não necessariamente o mar.

Na de querer tentar pegá-lo no pulo, perguntei:

- "Amigo, diga-me com toda sinceridade: Alguma vez você já viu o mar, ao vivo, eu disse ao vivo...??".

- "Eu já vi o mar. Já lhe falei!!!!" - disse ele rindo quase sem graça.

Por um instante eu comecei a achar que havia cometido um grande engano. Como sempre fazemos quando o cometemos, sorrindo decidi pôr um ponto final naquele assunto, dizendo-lhe:

-"Ok! Se você falou, está falado! Vamos trabalhar. Hoje nós temos muitos quilômetros a percorrer. Tenho muita coisa a lhe ostrar. "Suba na viatura, vamos começar pelas unidades da Cidade do Guarujá".

- "Legal, lá tem mar!" - Disse ele.

Como essa divisão onde estávamos, era muito próxima à saída de Santos, resolvi ir pela rodovia Anchieta e depois, ao pé da Serra do Mar, pegar a rodovia Piaçaguera-Guarujá. No trajeto, ele me perguntou sobre as fábricas instaladas ao longo dessa rodovia. Ao tempo em que lhe respondia, fui lhe mostrando algumas das grandes fábricas do nosso grande Parque Industrial, algumas das quais eu já havia trabalhado: Estireno, Cosipa, Ultrafertil, etc. Também o coloquei a par do que ele iria encontrar nas unidades remotas do Guarujá.

Curioso, talvez querendo me conhecer, ele me fez uma série de perguntas de cunho profissional, as quais respondi prontamente.

Ao chegar ao primeiro lugar a ser visitado, muito perto da praia, apesar de não ser possível enxergá-la, dava para sentir no ar o forte cheiro característico, de maresia. Aquilo me despertou a atenção para o nosso assunto anterior. Para tentar atiçá-lo, eu lhe disse:

- "Walter, estamos a uma quadra da praia do Tombo".

- "Essa eu não conheço". – disse ele rodando a cabeça à procura de alguma visão do mar.

- "Essa é muito bonita e limpa, como a maioria das praias do nosso litoral norte" - Disse-lhe.

- "Devem estar cheias de gatinhas lindas em seus biquininhos. Vocês é que são felizes. Hahaha!!".

- "A gente acaba se acostumando amigo!! Ah! Por favor, pegue esses desenhos e os manuais dos equipamentos e vamos entrar".

Ali passamos aproximadamente duas horas. Ele se mostrou muito simpático, inteligênte e profissional. Eu o achei muito decente e legal.

Quando senti que já havíamos esgotado o assunto sobre aquela instalação, perguntei-lhe se ele estava com fome e se queria almoçar.

Ele me disse que não estava com muita..., mas que me acompanharia.

Saímos dali e nos dirigimos para a praia das Pitangueiras. Estacionei a viatura e caminhamos em direção a um bom restaurante, um que eu já conhecia e estava acostumado a freqüentar quando a serviço no Guarujá, “O Bambuzal”. Expliquei-lhe que aquela praia era uma das mais badaladas do Guarujá, muito freqüentada por gente de alto nível financeiro e social. Quando lhe foi entregue o cardápio pelo garçom, ele pediu-me para escolher um prato para nós. Eu lhe disse que a especialidade da casa era de frutos do mar, que ele poderia escolher qualquer um de sua preferência, independente do preço, pois a empresa havia destinado uma verba para tal.

Pelo que senti, ele gostou muito do que eu disse pois, sorrindo me perguntou sobre as peculiaridades de cada prato de frutos do mar.

Após as escolhas, como ninguém é de ferro, muito menos eu, saindo um pouco do recomendado pela empresa, pedi duas caipirinhas. Deu para sentir que ele estava muito feliz em estar ali experimentando aquelas coisas do mar, jamais vistas e saboreadas por ele. Após tomarmos a segunda batida, senti que ele era meio fraco no que se refere a bebidas alcoólicas. Ele estava ficando cada vez mais eufórico, mas, eu acho isso até muito normal quando se está feliz, a "passeio", conhecendo um local diferente. Após os cafezinhos e paga a conta, ele me disse com uma cara bem malandra:

- "Roberto, me fala: Ce está querendo me sacanear, num tá? Hehehe!!".

Olhando para ele, em dúvidas, sem entender muito bem do que se tratava, lhe perguntei:

- "Walter, no que você acha que estou querendo te sacanear, e porque eu faria isso?".

- "Meu amigo, você sabe muito bem do que se trata. Não se faça de bobo comigo. Sou do interior, mas não sou Mané!".

Nesse instante a ficha caiu. Entendi do que se tratava e, rindo muito lhe perguntei:

- "É sobre aquela nossa conversa sobre você ter ou não conhecido o mar?".

- "É claro que é!! Você sabe disso. Eu vi um mapa da região pregado lá na parede da unidade. Pra me sacanear, você deu uma baita volta, veio até pelo caminho mais distante do mar!!".- "Tudo bem, eu poderia atravessar a cidade e ir beirando as nossas praias e atravessar a balsa para o Guarujá, mas com certeza, o caminho que fiz é o mais curto, só não entendi onde eu quis lhe sacanear?".

- "Você percebeu que eu não conhecia o mar é ficou lá me apertando e perguntando coisas que eu desconhecia, sobre coisas marítimas".

- "Amigo, você tem toda razão. Eu estava até brincando com você, mas terias evitado tudo isso se não fosses tão ensaboado e vaselina. Se tivesses me dito logo que não conhecias o mar, tudo seria mais facilmente resolvido".

Sorrindo e me abraçando, ele me disse, já meio alcoolizado e com a sua voz um tanto quanto embargada:

- "Cara, eu não estou mais agüentando. Vim da minha terra pensando nisso, em ver o mar ao vivo, provar a água salgada dele. Por favor, como vocês dizem; "deixa de ondas", vamos até lá agora que eu quero ver e sentir o mar!!".

Satisfeito por ele ter se entregado, um pouco comovido com o seu pedido, mas imaginando a ótima sensação que ele sentiria, disse-lhe:

- "Claro meu amigo, é pra já, vamos lá agora, ele está aqui bem perto".

Sentido um pouco da emoção dele pela proximidade da realização desse seu grande desejo, saímos caminhando juntos em direção à praia. Ele foi calado, pensativo, como que querendo antecipar a sua felicidade.

Chegando à avenida, paralela à Praia das Pitangueiras, esperamos o semáforo nos permitir atravessá-la. Do local onde estávamos, devido aos quiosques existentes e outros obstáculos ali presentes, ainda ficava difícil ver o mar. Ele ficou ali se movimentando, impaciente, com o pescoço esticado, girando a cabeça como que procurando ver o mar, quando...,"Meu Deus!!", lá se foi ele em disparada por entre os veículos em movimento em direção ao mar. Que perigo!! Esperei o sinaleiro parar o trânsito, saí correndo também. Por nada perderia aquele momento vivido por aquele jovem em busca da realização de seu sonho. Quando cheguei ao calçadão, ele já corria pelas areias em direção ao mar. Parecia uma criança, feliz! Fiquei ali parado, olhando-o emocionado, me segurando para não chorar. Presenciei ele, já descalço, entrando na água de calças e tudo. Ao ver a primeira onda, em espumas, rolar em sua direção, como uma criança ele recuou, depois, como que mais corajoso, foi entrando e, quando estava com a água na altura de seus joelhos, parou com as mãos na cintura e ficou admirando aquela imensidão marítima.

Eu estava ali extasiado, quase querendo ir ao seu encontro e participar junto a ele daquele momento, mas fiquei ali observando-o.

Levantando os seus braços bem abertos, como se estivesse agradecendo a Deus, eu o escutei gritar algo que não consegui entender. Logo após ele se abaixou e colheu um pouco de água, levou à boca e depois cuspiu. Que momento aquele... Foi demais!!! De uma lágrima fugaz, senti também o gosto de sal em minha boca

Devagar, ele saiu da água chutando as pequenas ondas. Na areia, pegou os seus sapatos e como um menino feliz veio correndo em minha direção, tal qual um garoto correndo de encontro a seu pai. Ao chegar à minha frente todo molhado até a cintura, sorrindo ele me perguntou:

- "Meu irmão, porque as lágrimas?".

Sentindo que eu estava muito emocionado e não lhe responderia, começando a chorar também, ele me deu um forte abraço e disse:

- "Muito obrigado meu amigo!!! Muito obrigado por tudo!!".

ZIBER
Enviado por ZIBER em 01/08/2007
Reeditado em 02/10/2011
Código do texto: T588674
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