Do inferno ao paraíso
Sou um escritor e todo bom escritor gosta de viajar a fim de entrar em contato com outras culturas e adquirir novas experiências. Para nós, os escritores, isso é muito mais do que satisfazer uma simples curiosidade turística, pois acaba se tornando mesmo uma necessidade. Vivência, eis uma palavra chave para mim.
Em uma de minhas muitas viagens pelo mundo, conheci certa vez um feiticeiro peruano que me ensinou a lidar com os demônios. É claro que não estou falando aqui daqueles demônios exteriores que entram no corpo das pessoas para possuí-las; tão pouco me refiro a um ser de aparência animalesca, com chifres e portando um tridente, cujo único prazer é torturar as pessoas num hipotético Inferno.
Eu falo dos nossos demônios interiores; do temor que temos de que, um dia, eles possam se tornar realidade. Extingui-los é uma tarefa quase impossível, todavia, se você não aprender a controlar seus demônios ou gênios, eles o controlarão por toda a vida.
Mas, voltando ao assunto das minhas viagens, quero lhes contar agora sobre a mais incrível que já realizei.
Minha visita ao reino infernal foi breve, afinal, felizmente ainda não perdi minha pobre alma.
Depois de embarcar no metrô na estação Jabaquara, senti-me subitamente arremessado para fora do vagão, já em movimento. Eu caia, caia, caia...
Quando finalmente aterrissei, pensei “mas que buraco é esse, meu Deus”!
A escuridão era total, o ar rarefeito e o odor de carniça animal já começava a embrulhar-me o estômago. Movido mais pelo instinto do que por alguma convicção, comecei a caminhar às cegas naquele breu.
Com os olhos mais acostumados agora àquela escuridão, passei a prestar atenção aos sons ambientes. Eram vozes humanas, femininas e masculinas, que gritavam, gemiam, uivavam, rosnavam e praguejavam: “Ai, ajudem-me, por misericórdia”! “Malditos, miseráveis, quando eu sair daqui, eu pego vocês”! “Castigo de Deus, eu sou culpada, culpada”!
Ouço passos que pareciam vir em minha direção. De repente vislumbro um vulto feminino carregando uma tocha. Quando o fogo ilumina seu rosto, a mulher de cabelos negros longos e escorridos, nariz adunco, porém, de aspecto fisionômico jovial, metida em um vestido branco, abre a boca e de dentro dela começa a escorrer um fluido negro e viscoso. Mas, logo seu semblante readquire o aspecto normal.
— Brincadeira, querido — diz a moça num tom jocoso. — Seja bem-vindo ao Inferno! E prosseguiu falando, ao mesmo tempo em que iluminava alguns rostos com a sua tocha incandescente, enquanto eu a acompanhava:
— Em nossa vasta clientela, temos aqui a predominância de assassinos sanguinários, líderes religiosos fanáticos, manipuladores e ambiciosos, políticos corruptos e advogados inescrupulosos.
Olhei para aquelas pessoas desvairadas pelo ódio e pela dor. Homens e mulheres cobertos por trapos malcheirosos ou simplesmente nus. Notei que alguns tinham a genitália deformada e coberta de chagas e outros se entregavam a lamentáveis orgias. Desesperado, um velho gritava que estava pegando fogo, entretanto, não pude visualizar nenhuma chama em seu surrado corpo. Um rapaz era espancado simultaneamente por duas mulheres. Enquanto aplicavam-lhe tapas, socos, mordidas e pontapés, elas gritavam: “você roubou nosso dinheiro, seu desgraçado, devolva”! Foi então que me ocorreu uma lembrança e imediatamente senti um arrepio a percorrer minha espinha.
— Ora, se aqui é o Inferno, onde está o... A mulher cortou-me rapidamente a fala.
— Está falando com ele — e soltando uma gargalhada, como quem estivesse se divertindo muito com aquela situação, esclareceu: —Sinto desapontá-lo, querido, mas o Diabo, o Satanás etc. não existe. Ele é apenas uma alegoria de personificação do mal ou se preferir, da inferioridade moral que existe em todos nós. A credulidade das pessoas, digamos mais impressionáveis, constitui boa diversão para os seres que tomam os nomes demoníacos quando vão se comunicar na crosta terrestre. O fato é que não existem, nem aqui nem em parte alguma, seres criados e devotados exclusivamente à prática do mal. Assim, quando alguém opta pelo caminho do mal, o faz por sua própria conta e ignorância, movido sempre por seus interesses inferiores.
— Ótimo, melhor assim — concordei. — E acredite, não estou nem um pouco desapontado. E fitando mais uma vez aqueles indivíduos que se debatiam de dor e que vociferavam uma série de impropérios, ousei indagar:
— Estariam todas essas pessoas condenadas a sofrerem por toda a eternidade?
— Só enquanto pensarem que o seu sofrimento é eterno. Em verdade o sofrimento tem sempre uma preciosa lição para nos ensinar, mas enquanto não entendermos o teor da lição, para assim começarmos a reverter o jogo, o sofrimento é apenas dor, que em síntese, surge da nossa resistência em modificar o que precisa ser modificado em nossa vida. É por aí, querido, nunca fui muito boa em filosofar — sorri novamente minha guia turística.
— A senhora é um anjo?
— Nem pensar. Na Terra fui uma puta mal remunerada e uma suicida. Hoje estou numa fase mais zen, em processo de regeneração. Ah, e para com esse negócio de senhora. Sou uma senhorita solteirona.
Não pude conter uma gostosa gargalhada, mesmo estando num “inferno”.
_ Quem criou esse lugar, Deus? A mulher pareceu meditar um pouco antes de responder e por fim, esclareceu:
— Ei, Deus não cria o mal nem a dor. Esse lugar e tantos outros que existem por aí é uma criação das próprias mentes perturbadas e viciadas que aqui habitam. Durante cerca de 30 anos esse também foi o meu lar. Se na Terra fui meretriz mal paga, aqui me tornei escrava sexual de cruéis criaturas.
Pela primeira vez notei um pouco de dor em suas palavras.
— Desculpe-me, senhorita! Olhe, acho que ainda não morri, então, por que você me tirou do vagão do metrô e me trouxe para cá antes da hora?
— Em primeiro lugar, se fizer tudo direitinho, não vai precisar dar as caras por aqui novamente. Eu o trouxe aqui por dois motivos: você é escritor; quero que escreva aos encarnados relatando o que você viu e ouviu.
— E se não acreditarem em mim? Veja bem, eu mesmo custo a acreditar que isso não passa de um sonho.
— Isso não é sonho, Félix, você sabe. Se não acreditarem, paciência, mas faça a sua parte. O semeador lança as suas sementes sem cogitar dos frutos, pois não desconhece que nem todo solo estará apto a recebê-las. Algo análogo ocorre no coração dos homens.
— Creio que compreendi, senhorita...
— Alina. Meu nome é Alina.
— Farei o que me pede, Alina. Eu escreverei.
Aquelas pobres almas pareciam completamente alheias ao nosso colóquio. Adivinhando-me os pensamentos, Alina elucida:
— De fato eles não nos ouvem, Félix. Cegos pelo ódio, surdos pela culpa e encarcerados em suas próprias dores, eles só enxergam e ouvem o que está em relação com as suas preocupações, interesses e necessidades imediatas. Mas, agora chega!
Incrível! Como numa cena de teletransporte de filmes de ficção científica, Alina e eu conversávamos agora em um campo verdejante, repleto de belas flores, cuja beleza e o perfume ainda hoje não consigo descrever.
— Agora vou contar o outro motivo que me fez trazê-lo aqui, Félix. A jovem estava linda e radiante ao dizer tais palavras e uma brisa suave soprava seus longos cabelos negros.
— Devo preveni-lo de que no prazo de um ano mais ou menos, sua esposa dará à luz uma menina.
Cético, redargui de forma educada:
— Ó, Alina! Pra nós seria a realização do nosso maior sonho. Há tempos estamos tentando, no entanto, minha esposa não consegue engravidar. Os médicos são unânimes em afirmar que do ponto de vista biológico, não há nada de errado com ela ou comigo. Paramos até de tentar por um tempo, pois como dizem alguns psiquiatras, a ansiedade pode estar causando algum tipo de bloqueio. Sei lá.
—Tudo tem a sua hora, querido. Acredite em mim, sua esposa vai engravidar. E tomando minhas mãos delicadamente entre as suas, a jovem arremata:
— Cuidem bem de mim, papai.
De repente tudo em volta de mim começou a rodar e em poucos segundos eu estava de volta à estação do metrô.
Um ano e meio depois desse insólito episódio, minha esposa deu à luz uma linda menina, que já nascera com cabelos pretos, lisos e fartos. Nós a chamamos de Alina.
Quanto ao inferno, ele não me assusta, porque descobri que Deus é amor, justiça e bondade e que ter a voz interior da consciência desperta, nos desperta para o bem.