CICATRIZ

Hesitério Kowaes ocupava uma atividade secundária na empresa de sua família. Protegido do convívio social, ele gostava mesmo era de ler revistas, livros e jornais no sossego do lar.

Passava o tempo, e Hesitério não se eximia das fobias e esquisitices que o entaipavam.

Por mais comezinha que fosse, qualquer ação era refém de uma incidência sobreposta ao comando inicial. Isso quer dizer que se ele desejasse beber água, era impositivo que contasse até vinte antes de apaziguar a sede.

Havia também o medo de altura, dos espaços amplos, o pânico no relacionamento com pessoas desconhecidas, sem falar na constante dúvida em relação a qual dos pés devesse, primeiramente, calçar o sapato.

Nas reuniões sociais promovidas pelos seus familiares, Hesitério era apresentado a várias mulheres. Embora não fossem, ele sempre as concebia demasiado enérgicas, longevas e robustas. Essas impressões emperravam qualquer contato mais próximo.

Por vezes, na companhia de um segurança, desafiando inimigos invisíveis, Hesitério se dispunha a empreender longos passeios a pé. Tênis, abrigo e um pouco de disposição. Mas, seu percurso era escasso. Logo o intento retraía-se.

Os aborrecimentos assumiam uma enorme dimensão. A tepidez e o descontrole emocional eram frequentes. Hesitério não conseguia beber um guaraná na lanchonete, sem que se notasse perseguido ou avaliado.

A morbidez intensificou-se. Hesitério passou a ter pesadelos. Frequentemente, via-se com as feições alteradas. Ora lhe faltava o nariz, ora se lhe ausentava a boca.

Em determinada ocasião, ele sofreu um acidente. Fraturou uma das pernas. Curiosamente, durante a recuperação, notou que respirava aliviado e argumentava de maneira desenvolta. Os seus problemas haviam desaparecido. Comunicou o fato ao psiquiatra. Entretanto, logo que voltou a andar, os embaraços retornaram.

Dessa forma, Hesitério se arrastava. Medicamentos, lamentações, rezas, tratamento sempiterno. Nada de melhoras.

Forçado por escassas reservas de ânimo, ele resolveu confinar-se no campo e cavalgar. Mesmo na solidão da natureza, desconfiou que o estivessem vigiando. Em consequência, perdeu as rédeas e sofreu uma queda. Teve fratura em um dos braços e suportou grave ferimento no rosto. O membro superior foi tratado exitosamente. Mas, apesar do concurso renomado da plástica corretiva, sobrou-lhe acentuada marca na face.

Depois do acontecido, Hesitério passou a viver sem drama psíquico. Arrojado, ele venceu postos na empresa e chegou a presidência do poderoso Grupo Kowaes. Por fim, era um homem realizado. Nada mais de fobias e esquisitices

Inexplicavelmente, Hesitério começou a descobrir os prazeres que até então lhe eram proibidos. Seus males já não iam além do resfriado.

Uma que outra feita, sonhava que o sinal imprimido no rosto havia se dissipado. Então, acordava suarento e nervoso. Mas, ao ver-se no espelho, tudo voltava ao normal.

Hesitério se desinteressou por um tratamento de vanguarda visando corrigir o rosto. A enigmática cicatriz trouxe-lhe um inusitado contentamento.