Defunto Incomodado

Por Gustavo Pilizari

As flores começam a incomodar. Está ficando insuportável este odor floral pesado e quase sufocante. Será que não sabem que tenho severa alergia? Com certeza sabem! Quantas e quantas vezes procurei médicos alergistas para combater este mal. Espirrar causa um transtorno na minha vida, tenho de parar tudo para recompor minha visão (sem contar o deslocamento dos óculos), e as narinas que rapidamente começam a escorrer (estou sem lenço aqui, alguém pode me trazer um? Não se esqueça que deve ser antialérgico). Tenho vontade de falar umas verdades, sabia! Sabem que durante toda a minha vida, todo santo dia vivi a base de descongestionante nasal (muitas gotas pingadas loucamente durante todo dia no meu nariz – é um prazer que beira o gozo quando sinto o nariz se abrir totalmente). É uma bendita droga – viciante, é claro -, sem ele não aguentaria passar a vida com o nariz entupido (por sinal, não colocaram nenhum aqui dentro, já começo a sentir um desconforto, uma ansiedade já toma conta de mim, uma falta de ar... estou ficando nervoso; este cheiro está oxidando minhas narinas).

É repugnante, sinto meu cérebro inflamado pelo torpor seco e irritante do cheiro das flores (devem ser rosas e crisântemos - é sim, acabo de confirmar -, é ridículo a falta de criatividade, é o cúmulo), até parece que só existem estes tipos de flores para serem colocadas dentro de um ataúde. O ser humano me é estranho, se acostuma com uma coisa e passa a vida toda imitando ritos.

Poderiam colocar mais cor, fazer uma decoração mais alegre se o objetivo é deixar o defunto esteticamente mais bonito, fazendo assim, a gente esquecer de sua couraça marmórea, plácida, quase pastosa. Penso que florzinhas amarelas bem delicadinhas ficariam tão mais fofas sobre o corpo (sem contar que o frescor e odor de outras espécies seria muito mais aprazível - o mesmo não se diz de rosas. É engraçado, sabia: as rosas quiçá, sejam umas das flores mais fascinantes, delgadas, finas, agradáveis ao olhar, com cores tão profundas e marcantes, todavia, seu cheiro é insuportável, é um fedor! Algumas coisas merecem apenas o nosso olhar e, de longe! Não pude conter o riso).

O aperto aqui dentro incomoda. Não entendo porque tem de ser um espaço tão apertado (é um absurdo, podem se preparar, pois a coisa é bem feia); muitos reclamam do sapato apertado (que dó, não sabem o que será parecer uma sardinha enlatada).

É tão constrangedor você ser obrigado a ficar estático, duro, sereno, intocável, como se fosse peça de museu, sendo observado durante todo o santo dia. Ai começa toda aquela ficção ao redor: gritos lancinantes, choros que parecem regar o coitado com tantas lágrimas (as flores quase desabrocham); velas queimando e derretendo feito o inferno na sua cabeça (será que acham isso legal?). Abraços em seu corpo duro, como se quisessem matar você de tanto apertar a sua mão, rosto e outras partes do corpo.

E aqui estou, frente a um rendado fino branco tecido, parece um véu que envolve todo o caixote; além desta trama, a madeira reta, laminada, tom claro sépia, bem polido por sinal (deve ser bem barato, não consigo identificar a madeira, deve ser pinho, claro! Desculpem, mas o riso é necessário).

O sono vem chegando, o calor - um tipo de umidade tropical -, deixa tudo parecendo uma estufa, o que acelera o desfalecimento das benditas flores que acabam por exalar ainda mais seus óleos tão voláteis que seria muito fácil daqui a pouco isso parecer um jardim com tantos insetos a pousar.

...tem um mosquito aqui dentro, estou me sentindo incomodado...

Gus Pilizari
Enviado por Gus Pilizari em 09/12/2016
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