ANA DEVE MORRER (VAI CHOVER)
O copo está vazio, Ana deve morrer. A urgência de matar a personagem sem apresenta-la mais de perto e apresentar o clímax desse breve relato é imperativa, o efeito da droga ingerida é de vinte minutos. Se havemos de colher o que plantamos, Ana terá fim silencioso. Passara despercebida pelos homens ocupados nos bares e pelas mulheres deles em seus labores e arrasta-se inútil da mesa da cozinha para quarto onde escreve sua despedida num bilhete porque precisa ser ouvida mesmo morta.
“Meu corpo inútil...
Ana vai morrer como também morrerão prostitutas donas de casa domésticas senadoras e bispos de todas as igrejas universais por moda e ocasião, para ficarmos nos extremos do que se considera no vulgar das consciências o santo e o profano, que entre uma coisa e outra nos encontramos. O que deveria nos incomodar é o fato de Ana ter escolhido o momento e o modo de chegar ao fim da sua história, às seis horas e vinte minutos do primeiro dia útil da semana. Ontem à tarde Ana saiu para a farmácia enfrentando as dificuldades de locomoção que lhe são peculiares, disse à mãe que sofria de dores fortes na cabeça e voltou com seu remédio de sempre que promete prolongar a espera de quem é portador de distrofia congênita. O conteúdo das ampolas no copo d’água cheio até o meio a mucosa do estômago absorve agora. Chegamos tarde para impedi-la e lamentar só nos causaria o constrangimento de não estar a seu lado antes. E não adianta animá-la, a vida não vale a pena para quem decide.
... dos homens não fui conta”.
A mãe de Ana deve encontrá-la como Polónio à Ofélia, como quem sonha. Dona Veridiana saiu sem ouvir o que dissemos.
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Mersearia é o nome do estabelecimento que abastece os moradores do bairro. Mersearia com s de supermercado, de simples e de duradouro que, mesmo não estando grafado no verbete o simulacro permite visualizar os contornos da letra na superfície da tinta dourando, demorando, desfazendo na ladainha das mitologias que associam à imagem da serpente a ideia de infinito e eternidade ainda que provavelmente já soubessem os antigos que matéria alguma no universo tenha a mesma durabilidade, é o caso da mesma letra em distinto, destino e destituído na frase Dona Veridiana não nos ouve enquanto desce a ladeira.
O nome do estabelecimento escrito com s quando deveria ser escrito com c, é preciso justificá-lo, parece ter sido fruto de uma disputa pelo léxico entre o velho português proprietário irritado e seu neto convicto impertinente que o corrigia.
Esse é o destino distinto de Dona Veridiana destituída de tudo, Ana deve morrer mas isso não tem importância porque ela ainda não sabe descendo a ladeira para comprar café.
Veridiana desce, desce, desce todos os dias cantando como podem ouvir os vizinhos que madrugam para o trabalho. Sem pressa e logo de volta com a garrafa de leite numa das mãos e pães sem esperança. Se o dia está claro o sol ilumina o contorno do morro e tudo arde sem resplandecer nas pétalas roxas das tumbérgias da encosta ou sobre os delicados hibiscos dobrados nos quintais abertos, é quando a possibilidade de terminar o barraco parece real como os pães sem esperança, então vê o morro como turista e fica feliz até se lembrar de que domingo levará cigarros para o marido na penitenciária onde cumpre pena por tráfico.
O dia ainda dorme na escuridão, Veridiana parece rezar baixinho. Já podemos ver a autovia e nela o transito que alimenta a cidade vazia.
Nuvens carregadas dão continuidade ao que a noite encobriu sem remissão. Vai chover. Pesando as contas agora mesmo, Veridiana arrependeu-se de ter pago a conta de luz que estava no prazo dado pela companhia porque desce sem dinheiro, Compro do português faz tempo, podemos ouvi-la, Meio quilo, só meio. Se reza, isso não é pai nosso. Estaca fria fixa olhos de vidro na cidade engolida cinza no breu.
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Esta mercearia com s é um entreposto que abastece os últimos bairros da cidade que pode ser ouvida distante. Dependendo do horário em que o freguês chegue é possível comprar de tudo. Desde produtos sobre os quais incidem impostos e lucros para o governo e também aqueles que dispensam nota fiscal por serem considerados ilegais mesmo movimentem receitas astronômicas, talvez chegue o dia em que o governo crie estratégias para da ilegalidade fazer contas claras.
Rapé carne em lata papel de carta seda Colomi arame farpado brinquedos de plástico de toda cor doces anil sabão em pedra e em pó água de lavadeira tijolos de demolição, pregos refrigerante e açúcar são dos itens mais procurados e ficam nas prateleiras da frente, café é item caro se por meio quilo paga-se o dobro ao português.
Antes de entrar, Veridiana dá passagem para um homem que pergunta onde fica o edifício Firenze, reclamando das novas tecnologias de comunicação reclama do tempo e diz que seu celular pai-de-santo só recebe.
Pode chover a qualquer momento.
O português não sabe onde fica o edifício Firenze, Aquele prédio é o da Receita Federal, tem o teto rachado por causa das telhas quebradas.
Um garoto uniformizado atravessa a rua ouvindo música num aparelho minúsculo enfiado nos ouvidos e vem em nossa direção. No uniforme duas palavras unidas se opõem no sentido e se diferem na cor - em azul, vida; em vermelho, droga.
_ Onde fica?
_ Por onde se chega?
_ Quanto tempo leva?
_ Não sei, não sei.
_ Chegar é esquecer um pouco.
Dona Veridiana parece irritada, o céu desaba.
O português diz um sim tingido de talvez, Temos café.
O funcionário da Droga-Vida estende uma nota para Dona Veridiana, Ana esteve na farmácia ontem e esqueceu de assinar o recebo.
_ A vida anda cara, meu rapaz.
_ Pior é não estar vivo, Dona.
_ Naquela cadeira? Sei não se é vida. Dona Veridiana assina o recibo arrematando o diálogo arrependida do que dissera.
Num instante a chuva que prometia cair o dia todo para, a ventania aguarda o momento de varrer o morro.
É quando o garoto uniformizado sai do nosso campo de visão que ouvimos melhor seu timbre de voz. Preocupado com o procedimento adequado no uso do medicamento avisa, Mais que vinte gotas o remédio vira veneno. E sorrindo conclui, A gente sempre fala o que vem nas letras miúdas das bulas porque quase ninguém lê.
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Baltazar Gonçalves