O caso dos peixes
Eram umas nove da manhã, o dia estava nublado e era um sábado de janeiro. Em dias assim o centro da cidade na área do comércio fica muito movimentado devido a vir muita gente do interior para a feira. Alegra-me o burburinho em festa, gosto do movimento. Esse é o dia em que vou ao bar do Antônio rever alguns conhecidos, tomar um aperitivo para abrir o apetite e conversar um pouco. O clima ameno do dia estava muito convidativo a uma boa libação. Na noite anterior havia chovido pesado sobre a cidade e arredores. A conversa no bar tendeu a ser sobre coisas de inverno como é muito natural no Nordeste. A quantidade de chuva do ano passado havia sido abaixo da média segundo os estudiosos e, agora será que teríamos alguma compensação? Quem sabia? E aí se falou de profetas da chuva, de Patativa e um poema que fez sobre um moço num avião que bombardeava nuvens para fazê-las chover. Enchentes foram relembradas, a construção e a reconstrução do Orós que foi paralisada em 22, recomeçada em 58 e novamente paralisada em 1960 por um inverno pesado.
Na cheia de 60 espalhou-se um terror na população das margens do Jaguaribe. Ouviam-se as profecias exaltadas de alguns de que as igrejas das cidades à beira do rio iam virar cama de baleia. O Chico do Aracati, senhor septuagenário, relembrou a história do engenheiro ateu que trabalhou na barragem do Orós. Para o descrente, o açude só ia encher totalmente em uns dez anos ou mais de bom inverno. Mas como que por castigo para calar a boca do incréu, pouco tempo depois vieram grandes águas, e em poucos dias a barragem se rompeu e outras partes da contenção tiveram que ser dinamitadas para se evitar um grande volume e, portanto, maior dano aos ribeirinhos. Atualmente as coisas eram diferentes, tínhamos um outro grande reservatório, o Castanhão, construído também entre serras, mas será que aguentaria represar as águas como as da enchente de 1924? Quem é que sabia? E as cogitações ficavam no ar.
Toda aquela conversa estava afinada com o acontecimento da chuva passada, mas eu jamais podia imaginar que teria a continuidade que teve naquele dia. Entre uma dose e outra, o assunto continuou por caminhos de enchente e estiagens, e falou-se também do nível baixo da água no Sudeste e de castigos da natureza. As mesmas repetições de que o homem tem desrespeitado demais o meio ambiente. Antes que mudássemos a tônica do assunto, recebemos a visita de dois estranhos. Eram pesquisadores, biólogos da capital. Queriam saber onde encontrariam algum pescador, morador da cidade ou do interior. Pois estavam à procura de uns peixes de nuvens. Ao chegarem, dirigiram-se ao Antônio, proprietário do recinto e depois a nós, nos apertando as mãos, pedindo licença e perguntando se algum de nós já tinha ouvido falar dos peixes de nuvens na nossa região. O Zé Maílson, que é mecânico de radiadores e naquele momento era o mais falante da nossa mesa, disse que sim, que o seu avô de Quixeré, falava desses peixes que apareciam nas lagoas e barreiros das várzeas, sempre que chovia no começo de ano. Eu não quis comentar nada pois desconhecia o assunto, mas o caso foi confirmado por outros bebedores presentes.
Achei interessante. Os pesquisadores pediram cerveja e falaram que os peixes eram raros, disseram que a nossa região era uma das poucas onde ainda se podia encontrá-los. O Chico do Aracati falou que conhecia um pescador na localidade de Ingá, era o seu João, e disse a referência da casa do homem. Sugeriu aos pesquisadores que estes podiam alugar um moto-taxi para guiá-los até o local. Quem sabe por lá eles teriam informação melhor, e assim foi. Agradeceram, terminaram a cerveja e se foram.
Depois que os biólogos saíram, foi que a conversa esquentou no tom do estranho peixe. Na minha mesa estavam, o Chico, o Zé Maílson, eu e o calado Aroldo, que durante o tempo em que os dois estranhos estiveram no bar, nada disse. O Aroldo era mesmo reservado, usava barba a nazareno, fora caminhoneiro e gostava mais de cachaça do que cerveja. Talvez devido a sua experiência de homem viajado, era mais de observar e não gostava de se intrometer em conversas alheias, mas quando se dispunha a falar de alguma coisa, gostava de esmiuçar o assunto. Então, sem mais nem menos o Aroldo resolveu inquirir ao Zé Maílson, se este achava mesmo que os peixes vinham das nuvens. O falante recebeu a pergunta com espanto e disse em voz alta que não sabia, nunca tinha visto os tais peixes, o avô dele era que falava, e que se os mais velhos diziam que os peixes eram das nuvens não era ele que ia dizer que não. Nesse mundo velho não duvidava de nada, não era nem da linha de São Tomé, e riu sozinho.
Nisso o Aroldo, para espanto meu resolveu jogar a interrogação na direção dos fregueses das outras mesas. Se alguém acreditava naquilo de peixes de nuvens. Dessa vez para para espanto meu, levantou-se de uma das mesas mais afastadas um sujeito espadaúdo, de chapéu de palha, devia ter mais de cinquenta anos, meio sarará. Veio de lá para cá pisando duro e disse em voz alta encarando o Aroldo, que já tinha visto os peixes e por muitas vezes desde menino, apostava com qualquer um e não perdia. O começo daquela discussão calou a boca de todos do bar. Nisso o Aroldo se levantou também e disse que não duvidava que ele tivesse visto os peixes, mas queria era saber se ele acreditava mesmo que aqueles peixes das lagoas vinham das nuvens. O homem deu a mesma resposta do Zé Maílson de que os antigos é que diziam que os peixes eram das nuvens. Ele os tinha visto nos barreiros que os trabalhadores das cerâmicas abriam nas várzeas. Em dezembro os buracos eram secos no pó, e quando era na época das primeiras chuvas depois da estiagem apareciam os peixinhos do tamanho de piabas, nadando ali, tinha testemunha, não era de mentir nem por brincadeira.
O Aroldo se aproximou mais ainda do sarará e disse com voz apaziguadora que acreditava na sua palavra, o peixe existia sim, mas o que ele queria saber é de onde o homem achava que os peixes vinham. O homem ficou vermelho intrigado e sem palavras. O Aroldo como que para chatear inquiriu novamente, se ele acreditava que os peixes dos barreiros vinham das nuvens. O matuto disse que só podia ser. Aí o Aroldo disse que provava para qualquer um como os peixes não vinham das nuvens, e continuou falando para todos os presentes em voz alta:
- Todo mundo aqui já deve ter se molhado na chuva! nisso, ficou olhando bem nos olhos dos presentes e se rindo por detrás da grande barba, - e quando foi que alguém já viu um peixe cair na cabeça de quem está tomando banho de chuva? Ou quando foi que alguém encontrou um peixe vivo pulando em cima de um telhado depois de um temporal? – Aquela sua sua fala me chamou atenção e a dos presentes, houve um silencio geral e o Aroldo, velho caminhoneiro continuou:
- O negócio é o seguinte: não tem peixe vindo de chuva nada! Tem o peixe dos barreiros, quando a lagoa está secando a fêmea põe as ovas, depois que a lagoa seca os peixes morrem, as ovas ficam enterradas na lama, então, quando volta a chover de novo os peixes nascem das ovas que ficaram no barro. As ovas podem ficar esperando por um ano ou mais para nascer. Ninguém nunca disse isso para os antigos do interior, mas eu tô dizendo pra vocês agora, e olha que eu não sou nenhum cientista, só sei disso porque vi pela internet.
Nisso o matuto de chapéu de palha, se dirigindo à mesa dele, ainda repetiu que tinha visto os peixinhos muitas vezes nos barreiros, essa parte aí das ovas não sabia não, só não era de dizer mentira à toa, e nem de inventar nada não.
O Aroldo, porém, antes de se sentar ainda acrescentou que os peixes de nuvens podiam ser batizados agora como peixes do barro, caía melhor para eles um nome assim. O zum zum zum das vozes no bar voltou ao normal, só que agora com algum riso entre uma dose e outra, o dia estava com temperatura agradável e eu me senti mais rico com a inusitada curiosidade que tomara conhecimento.