Dança

Prólogo

Dois homens comendo na mesma lanchonete que comem todos os dias na hora do almoço do expediente.

– Sua filha é um deles?

– Sim, começou noite passada.

– Meu Deus, isso parece estar só piorando. Tenho um primo que está assim também, começou a quatro dias e não parou mais.

Os detalhes do assunto pareceriam absurdos há uma semana atrás, mas o mundo ficou louco desde então. Não se sabe quando ou quem exatamente começou aquilo tudo, mas o mais preocupante é o fato de que, até agora, não há nenhuma explicação realmente convincente à respeito da situação.

– A minha vizinha me contou que a mãe dela “pegou” também, a senhorinha tem 82 anos e está assim a 29 horas. Da pra imaginar? Pobre coitada...

– Isso não é nada... Ouvi dizer de um cara que está assim a 6 dias, o problema é que ele é paraplégico, faz só com as mãos e com a cabeça.

– Cristo! Estou dizendo, as coisas estão piorando. O governo devia se pronunciar à respeito. Que merda, a maldita ONU devia fazer algo. Minha filha se recusa a comer ou dormir!

– Já vi matéria na televisão aconselhando deixá-los assim e já vi matéria falando para forçá-los a parar, amarrar eles, sei lá... O negócio é que ninguém sabe como lidar com isso. Tem gente procurando guru, tem quem contrate músico particular para tentar saciá-los, tem até eventos para esse pessoal se encontrar e fazer isso junto.

A garçonete se aproxima com a jarra de café, mas não chega a encher os copos dos dois. Ao invés disso, a mulher para diante da mesa onde eles estão sentados, fica estática por alguns instantes e por fim começa seus passos. A jarra de café espatifa no chão enquanto a garçonete improvisa uma espécie de Ballet desgovernado.

*****

Uma semana antes

Erich sabia que eles viriam atrás dele. Quando fez o empréstimo não pensou em como arranjaria dinheiro para pagar, pensou apenas em quanto pó poderia comprar. Agora, com um homem apontando uma arma para sua cabeça, ele começou a repensar suas escolhas; porém era tarde demais, logo seus miolos estariam espalhados pela parede de seu apartamentinho sujo.

– Eu vou pa-pagar, eu juro! Me dê mais dois dias e eu arranjo o dinheiro, p-por favor.

– Sinto muito, cara. O chefe já prolongou por tempo demais sua dívida.

– M-mas... Se vo-você me ma-matar ele não vai receber nu-nunca.

– Pode até não receber, mas os viciados daqui vão ficar sabendo disso. Você é um recado: Ninguém fode com o chefe!

Erich estava de joelhos, chorando escandalosamente. Conseguiu pensar o quanto queria, naquele momento, algumas carreiras para se sentir bem. Quando cheirava se sentia imbatível, poderia lidar com a situação, mas ele estava sem e teria que encarar aquela realidade.

– Agora faça o favor de passar esse recado direitinho – o homem sentenciou pronto para apertar o gatilho.

Erich deve ter ficado pelo menos dois minutos com os olhos bem fechados esperando a bala perfurar seu crânio, porém a arma não foi disparada. Teria duvidado, se não estivesse limpo naquele dia, no que seus olhos viram quando ele tomou coragem para abri-los. O cobrador estava... se mexendo estranho... dançando?! Os olhos do homem do tamanho de um armário estavam vidrados como os olhos de personagens de desenho animado quando estão sob hipnose, ele ainda segurava a pistola em uma das mãos, mas a outra balançava freneticamente como um dançarino de jazz.

Juntamente com o cobrador, milhares de pessoas ao redor do mundo estavam tendo o mesmo surto. Homens, mulheres, crianças e idosos; em todos os continentes, não parecia haver um padrão nas vitimas. Não era como se os “infectados” se contorcessem aleatoriamente, eram de fato passos de dança – seguiam certo compasso.

*****

Atualmente

Anna senta no sofá e liga a televisão. Um cara de óculos de grau armação tartaruga e cavanhaque falava palavras difíceis – na tela estava escrito: Dr. Trauss, sociólogo, discursa sobre a epidemia de dança. Epidemia... Era assim que estavam chamando agora, na família de Anna ninguém havia pego, mas ela ficara sabendo de pelo menos dois casos na sua escola. O sociólogo continua seu monólogo:

“Do ponto de vista sociológico, a sociedade estará sempre sujeita a condicionamentos involuntários, contanto que estes sejam abordados de forma coletiva. Isto é, viver em sociedade implica comportamento coletivo. Esta epidemia, por mais peculiar que seja, evidencia a empatia inata do homem enquanto cidadão. A busca pelo sentimento de pertencimento é, neste caso, subconsciente...”

Anna muda de canal. Agora um homem de terno berrava no microfone segurando o livro sagrado:

“Pois o Diabo anda entre nós! O demônio busca, através da suscetibilidade do pecador, penetrar nossas almas e corromper nosso corpo através de agitações profanas. Aqueles que têm em sua família um escravo da carne possuída – um dançarino de Satanás! – deverão recorrer à Cristo para abater esse demônio que os afligem...”

A garota muda de canal novamente. Um programa de auditório estava começando:

“Bem vindos ao mais novo programa desta emissora: Dançando Sem Parar! O programa onde você telespectador conhece a vida de famílias que vivenciam a epidemia de dança. Temos o quadro ‘Quem Dança Melhor’, temos também ‘Pare Se Puder’, temos ‘Entrevistando Dançarinos’ e muito mais! Agora vamos...”

A jovem aperta o botão do controle remoto mais uma vez, agora na tela está escrito: Conspiração – A dança da influência.

“...razões para acreditar que se trata de uma hipnose em massa.”

Era uma mesa redonda com quatro pessoas discutindo a epidemia, o que falava agora era T.P. Johnson, escritor da não-ficção Controle Coletivo: Conspiração ou Paranoia?

“Mensagens subliminares contidas em propagandas vinda de todos os meios de comunicação: televisão, outdoors, telemarketing e principalmente a magnânima internet.”

“Então você está dizendo que estamos sendo condicionados subliminarmente a dançar?!”

“Exato!”

“Mas por que dançar?!”

“Bem...”

Um outro homem a mesa, olhos arregalados e cabelo emaranhado (Jorge A. Carlos, Ufologista), interrompe o escritor paranoico.

“Pare com essa baboseira. Não estamos hipnotizados! O que está acontecendo no planeta está bem claro para mim. Se trata de uma invasão extraterrestre! Os alienígenas estão enviando vírus capazes de movimentar pessoas (dança é claro) para a Terra. Em pouco tempo essa epidemia passará a ser uma abdução em massa, todos os dançarinos serão levados para estudos no espaço...”

“Vocês estão redondamente equivocados” Agora quem interrompeu foi um careca barbudo (Sidney Fenders, psicanalista) “trata-se de um fenômeno estritamente psicológico, que retrata a verdadeira complexidade do cérebro humano que nós psicanalistas estudamos...”

Anna muda de canal novamente. Neste estava um programa de notícias:

“...redes sócias e site de vídeos, onde a população relata suas experiências pessoais com a epidemia, há também quem use da situação para entretenimento e fazer piadas à respeito... Um momento... Acabo de receber a confirmação da primeira morte registrada devido a epidemia de dança! Pelo o que sabemos a vítima – uma mulher francesa chamada Frau Troffea – morreu de ataque cardíaco após 7 dias dançando sem cessar. Após essa informação devemos esperar uma mobilidade pública e governamental para pôr fim à epidemia.”

A garota por fim desliga a televisão, não aguentava mais aquele mundo de dançarinos, claro que sentia pela francesa que perecera, contudo sempre odiou dança e agora odiava mais ainda...

*****

Epílogo

Após 2 mês, mais de 2 milhões de casos confirmados e um total de 435 mortes (na maioria das vezes por ataque cardíaco, derrame cerebral ou simplesmente exaustão), a epidemia findou quase que de maneira repentina. Ainda sem explicação, o fenômeno segue abstruso para toda a população mundial.

É possível que com o passar dos anos grande parte da sociedade acabe deletando esse acontecimento de sua memória. Aqueles cujo parentes e conhecidos pereceram, continuarão receosos à passos de dança, sendo eles ao acaso ou voluntários. Mas até mesmo a próxima geração destes, por fim largará os estigmas do ocorrido. A epidemia de dança será completamente perdida na história dos fenômenos peculiares.

Mas, se algum dia seu cérebro se entorpecer e apenas o seu subconsciente gritar bem alto em sua cabeça: DANCE! DANCE! DANCE! É bom suas pernas estarem prontas, pois seu par para esta dança poderá muito bem ser a morte.

Inspirado na epidemia de dança de 1518.