Espectros de almas esquálidas
Mercedes caminha pelas ruas absorta em pensamentos e questionamentos sobre como é difícil residir num espaço geográfico desconhecido, não ter pessoas a quem possa recorrer em uma necessidade, ou mesmo colaborar, numa eventualidade; como é desagradável se sentir sempre só, não fazer parte da vida social desse espaço, porque não tem raízes ali; sentir-se segregada, constantemente, e sem direito a reivindicar, como fazem os negros, os homossexuais, as minorias. Enfim, é nesse clima de solidão absoluta da alma que ela cruza com alguém que lhe dirige a palavra:
_ Boa tarde, tudo bem?
Mercedes apressa-se e responde-lhe com uma ameaça do que seria o esboço de um sorriso. Mal faz isso e a pessoa já caminha mais adiante, sem que ela conseguisse, ao menos, ver-lhe o rosto. Em apenas um segundo, ela experimenta uma sensação de euforia e frustração a um só tempo. Euforia por não se sentir mais tão só, afinal, alguém a reconhecera, falou com ela, era verdade, aquilo estava acontecendo, beliscou a pele de seu braço e certificou-se de que era verdade. O sentimento de frustração por conta da evanescência da pessoa por entre as gentes. Volatilizou-se num espaço de tempo ínfimo! Que desagradável esse sentimento! Pensou. Mas a vida continua, o dia continua, o percurso continua.
Assim, a mulher intensifica suas reflexões sobre esse aspecto da vida; sobre como as relações humanas inexistem ou são frias. São relações resultantes da obediência às regras de boa convivência que fazem com que as pessoas, aparentemente, ainda se respeitem umas às outras, mesmo sem se conhecerem mais profundamente; ninguém nega um bom dia ou boa tarde, ou um como vai, a outrem. Mas só isso é tão pouco! -indigna-se ela.
Ainda introspectiva, Mercedes admite que o ser humano precisa organizar sua vida em torno dessas regras sociais. Não lhe é difícil perceber o valor desses acordos tácitos já estabelecidos na sociedade há muito tempo. Porém, há a preocupação com a proporção que isso vem assumindo nos dias atuais. Foram anos e anos de pesquisas e buscas para se perceber que o ser humano é complexo. E agora isso tudo será ignorado? - pergunta-se ela. Assim, absorta em pensamentos, encontra-se com uma ex-colega de trabalho que se dirige a ela dizendo:
_ Sumida! Há quanto tempo!
Nem mesmo tem certeza de que entendeu as palavras da ex-colega e já lhe devolve quase que mecanicamente aquela mesma ameaça do que seria o esboço de um sorriso. Mas o rosto da ex-colega já se perdera na multidão de rostos, em sua maioria, esquálidos. Tão deprimentes que um sentimento de repulsa, ao mesmo tempo de insegurança, de pavor toma conta de Mercedes. E a vida continua, a tarde continua, a caminhada continua nas ruas do povoado, na Ilha da Solidão, mesmo diante da indiferença de almas esquálidas.
E assim, aos poucos, Mercedes, numa atitude ainda reflexiva, vai se dando conta de que o ser humano é um poço de sentimentos e emoções que o acompanha sempre. Ela compreende que para onde quer que vá, carregará um poço de emoções que estará numa luta dinâmica e constante para ser expulso de sua alma, mesmo não encontrando condições favoráveis para tal. Nem sempre as pessoas se dão conta de que trouxeram emoções na bagagem, constata ela. Entretanto, de uma coisa Mercedes já se deu conta: essas emoções vão aflorar um dia, exigindo atenção devida. Daí sua preocupação assídua com a aridez das almas esquálidas que vagueiam pela cidade num individualismo exacerbado.
Mais adiante, já quase ao final de seu percurso, ela se depara com uma ex-funcionária do marido que, ao vê-la, vai logo dizendo:
_ Ah, eu soube que Antônio esteve internado. Melhoras para o maridão. Diga-lhe que mandei um abraço!
Sem tempo ao menos para absorver bem as ideias, Mercedes faz meneios com a cabeça, lançando aquela mesma ameaça do que seria o esboço de um sorriso, conseguindo ser agradável, conforme ditam as regras sociais e, ao chegar em casa, Antônio ainda convalescente, deitado no mesmo sofá-cama, com a mesma televisão ligada há mais de trinta anos, ela dirige-se a ele e diz:
- Sabe quem lhe mandou um abraço, hoje?
Ele a olha com indiferença, expande a mandíbula num ar de dúvida (seria curiosidade?) e expulsa uma ameaça do que seria o esboço de um sorriso, dizendo:
_ Dá licença! Hoje é o último capítulo! Não quero perder.
Mercedes, finalmente, senta-se no sofá ao lado e se dá conta de que essa ausência de troca de olhares fraternos e mais demorados entre as pessoas, essa frialdade para com o próximo, essa falta de toque pele a pele entre os seres humanos e essa situação de superficialidade nas relações humanas já adentraram os lares. Então, se dirige ao quarto de dormir com questionamentos ainda maiores: Será que esses espaços virtuais darão conta de tanta subjetividade contida? Desistir das relações sociais para investir nas virtuais?
Deitada em sua cama e cansada por conta ainda da longa caminhada, acaba dormindo e sonhando com Freud (“Freud explica”?). Freud pode até explicar, mas a vida continua, a caminhada continua e a solidão da alma não mudou de cor! É cada vez mais esquálida, na Ilha da Solidão.