Uma punheta tocada em homenagem ao nada?
Vi esse cara entrar no bar vestido como qualquer um e se sentar como qualquer um. Exceto pelo fato de ter a estatura de um jogador de basquete, se parecia com qualquer outro cara. Não tinha olhos diferentes de quaisquer outros olhos que eu vira em minha vida. Aquela história de que você pode saber algo de uma pessoa olhando em seus olhos é besteira grossa. Apesar de que tem vezes em que eu me olho nos espelho e, me encarando, fico pensando assim “esses são os olhos de alguém que já viu muita coisa; alguém que já passou por poucas e boas; são os olhos de alguém que seria capaz de matar ou que já matou”. Não, eu não vivi nem vi muita coisa. Vivi e vi muito menos do que a maioria das pessoas da minha idade. Talvez eu tenha sentido e pensado em muita coisa. Certamente seria capaz de matar novamente, mas isso não faz de mim um homem de verdade. Mesmo que eu pense que faz. Esse cara sabia desse cara que eu havia matado há muito tempo atrás. E foi assim que a conversa começou...
“Boa tarde”, disse, puxando um banco e se sentando ao meu lado.
“Oi... digo, e aí, cara. Te conheço?” — sorriso besta na cara; meus dentes de cavalo da frente me incomodando como sempre.
“A vida toda.”
Veado de merda, pensei. “Tá bom então”, falei.
“Não vai me convidar para sentar?”
“Tem um banco aí do lado.” Dei de ombros. “Qualquer um pode sentar nele. É só pedir alguma coisa e você pode ficar em cima dele até o lugar fechar.”
“Bons modos nunca foram mesmo o seu forte.”
“Genial.” Joguei um pouco de sal dentro do meu copo de cerveja e tomei um gole. “Do que isto se trata, afinal de contas?”
“Por favor, a carta de vinhos”, pediu ao Waldomiro, o dono/funcionário do bar. Se sentou.
Veado mesmo, pensei.
“Não temos carta de vinho; pode ser o cardápio normal?”, Waldomiro perguntou desconfiado. (Nem cardápio achei que eles tinham naquela bodega.)
“Pode”, me intrometi, já começando a me irritar com aquilo. Não por eu ser machão demais, mas por achar que o desconhecido estava querendo beber às minhas custas. “Traga uma comanda para ele também”, larguei.
“Não se preocupe”, ele disse. “Não estou aqui para beber com o seu dinheiro.”
“Eu não disse isso.”
“Mas pensou.”
“Certo. O que mais estou pensando?”
“Você está começando a ficar irritado e.... espere... que se fosse nos velhos tempos, já teria ‘caído na porrada’. Ou pelo menos é no que gosta de acreditar.”
“Interessante, cara.”
Era verdade. Não que eu fosse machão nos velhos tempos. Eu apenas tomava umas e outras e de quando em quando achava que a minha missão era me comportar como a estrela de rock decadente que eu nunca fora. Ou como qualquer outro tipo de idiota por aí que você encontra de esquina em esquina.
“Você acha que me venceria numa luta justa?”, perguntou. Havia um brilho muito estranho em seu olhar.
“Acho que não”, respondi, disfarçando não ter notado brilho nenhum. “Porém, depende do que você considera justo.”
“O que VOCÊ considera justo?”
“Qualquer coisa para vencer. Luta é luta. Sou eu e o resto.”
“Só você?”
“Eu e Deus”, falei só para irritá-lo.
“Interessante.” Um pequeno sorriso despontou num dos cantos de seus lábios. Tinha dentes de comercial de pasta de dente.
“É medo.”
“Eu sei. Medo de ter que prestar constas depois.”
Dei um longo suspiro e virei o meu copo de cerveja.
“Prestar consta de que caralho? Quem é você, por que está falando comigo, isto aqui é um filme do Quentin Tarantino ou o quê? Dá pra me explicar o que quer?”
“Bruno, Mosquito e Leandro.”
Meu sangue gelou nessa hora. Pensei em sair correndo; pensei em dizer que eu não sabia do que ele estava falando. Mas não fazia o meu estilo. Gostava de pensar que comigo o bagulho era até as últimas consequências. Fiquei com a minha bunda lá onde estava mesmo, e, tentando disfarçar o tremor nas mãos, me servi de mais uma dose de cerveja.
“Era para eu estar impressionado?”, a voz já começando a sair diferente.
“Quatro homens para emboscar apenas um?”
“Não sei do que está falando.”
“E zero de peso na consciência de sua parte, não é?” Tomou um gole de seu vinho e fez uma careta. “Você não ter sido pego até hoje não quer dizer que não vá responder pelo que fez algum dia.”
“Você é...”
“Não sou da polícia. A polícia não nos interessa.”
Veio me chantagear ou me matar. Agora eu sabia que ia ter que dar um jeito naquele cara ou deixar que ele desse um jeito em mim. Eu não me preocupava nem um pouco com o desfecho daquilo, agora que sabia que não ia terminar trancafiado numa cela. Claro que ele podia mesmo ser um policial à paisana com um gravador tentando arrancar uma confissão, mas algo me disse que não era disso que aquilo se tratava.
“Disso que aquilo”, que coisa estranha. Mas vamos lá...
“Ok. Se veio me chantagear, é melhor meter ou mandar meterem uma bala na minha cabeça. Se veio me matar e resolveu fazer essa ceninha toda antes, bom, isto aqui não é um filme, então vá em frente.”
“Dessa vez você realmente quer dizer exatamente o que disse”, crispou as sobrancelhas. “É realmente impressionante.”
Um vidente tentando me chantagear?
Que caralho estava acontecendo?
“Acho que li histórias em quadrinhos demais quando era criança” — soltei, tentando soar esperto barateando o discurso para ganhar tempo.
“Você não é o Wolverine.”
“Ainda assim não acho que vou morrer hoje. Mas você pode tentar” — começando a me sentir confiante.
“Eu posso te matar.” Brincou de girar no banquinho um pouco. E continuou: “Mas o que te leva a pensar que eu não vou?”
“Essa conversinha toda. Aliás, qual é o seu nome?”
“Não posso te dizer agora.”
“E que tal daqui há um minuto?”
“Você sempre se achou muito esperto.”
“E, no entanto, nunca fui tão esperto.”
“Algumas vezes foi.”
“Sempre me livrei dos meus problemas.”
“Claro que sim.”
“Se está pensando em ganhar algum em cima dessa história, vai tirando o teu pônei da chuva. Se bem que, de quanto é que estamos falando aqui?”
“É, hoje você não é mais aquele cara que estava pronto para ir morar num daqueles cortiços na estação da Luz...”
“Escrevendo textos cada vez mais loucos no meu notebook onde tinha que salvar tudo o tempo todo porque o filho da puta desligava do nada, bebendo direto nos degraus das entradas dos fliperamas decadentes de péssima fama e... espere, como é que você pode saber disso??”
“Seu grande sonho de beber até morrer como um escritor durão das antigas”, afirmou sarcasticamente. Então gargalhou dando soquinhos no balcão engordurado daquela espelunca.
“Exatamente! Como você pode saber disso?”
“Deixou de ser seu grande sonho há muito tempo, não é?”
“Não era exatamente um sonho”, respondi como se fosse a coisa mais normal do mundo aquele sujeito saber de pensamentos meus, ou, o que era mais estranho ainda, de trechos de crônicas literárias meus que eu publicava na internet e ninguém lia. “Era a última saída para o fracasso total que foi a minha vida.”
“E porque não é mais?”
“Porque eu melhorei de grana”, soltei como se não fosse nada.
“Amor ou algum tipo de sucesso...”
“Um homem só precisa disso para se realizar. Não precisa ser necessariamente amor.”
“Era mais ou menos assim que o velho dizia.”
Um fã, imaginei naquele momento.
Mas como ele podia saber que eu tinha matado um cara há anos atrás?
Continuei com a conversa absurda...
“Isso aí. E outro dia vi um daqueles pocket books do Bubu à venda numa lojinha de conveniência de um posto de gasolina. Esse tipo de coisa deve fazer ele dar risada lá do outro lado.”
“Ah, sim. Pode ter certeza que faz”, afirmou categoricamente.
“Eu não posso ter certeza de nada. E nem você, cacete. A não ser que você tenha morrido e voltado com uma missão tipo acabar com essa porcaria toda; que seja um extraterrestre, um ciborgue que veio do futuro para matar o John Connor ou qualquer coisa assim.”
“Eu tenho poderes que você não tem.”
“Claro que tem, amigão.”
“Waldomiro”, chamei. “Escuta, esse cara aqui do meu lado, você tá vendo ele também ou sou só eu?”
“Oxe, japonês, que conversa mais estranha. É claro que eu tô vendo esse cabra aí.”
“Ah, obrigado. Era só isso mesmo.” Dei um joinha e o dispensei.
“Satisfeito?”, ele perguntou.
“Claro. O que pode ser mais natural do que um desconhecido completo se sentar aqui do meu lado e falar de coisas que eu nunca contei para ninguém? Aliás, acho que já bebi demais. Vou terminar essa e voltar para casa; tenho um cachorro e uma pilha de louças para cuidar.”
“Se eu quiser fazer você ficar sentado aí para sempre, é fácil.”
Daí um cara acende meu pavio de nove centímetros duro e depois sou eu o errado há oito anos atrás quando termino pendurado na janela do carro de um outro cara com metade de um copo quebrado nas mãos contra a sua jugular, logo em seguida sendo derrubado por uma cambada de velhos desdentados amigos seus e levando um monte de chutes que não doeram na hora e muito menos na manhã seguinte.
“Quero ver tentar”, falei, e já ia me levantando. Só que não. Havia algo muito errado ali. Meu rabo estava colado naquele tamborete! Me sacudi tanto que quase tive um ataque do coração. “Que merda é essa que você fez comigo, seu filho duma puta?”
“Acredita em mim agora?”
“Mas que merda! Waldomiro, desce mais uma.”
“Quando lhe é dada a oportunidade de ser maior do que você mesmo, é claro que você pode escolher fugir dela como um cão com o rabo entre as pernas”, ele disse com um certo amargor. Ou desprezo.
“E daí?”
“E daí que o que te faz pensar que você um belo dia vai dormir miserável, como sempre, e acordar realizado no dia seguinte? Você está neste mundo para transcender à sua mísera condição humana. Não estamos falando num passeio num shopping center. É isso ou definhar pelo simples prazer de definhar até o fim de seus dias.”
“Tudo bem. Então você está me dizendo que é do serviço ultra secreto americano — tão secreto que nem mesmo o presidente sabe de sua existência — e que eu tenho a oportunidade de me tornar um ultra agente com poderes especiais sob a condição de nunca contestar nenhuma ordem em troca de continuar vivendo livre do crime que cometi?”
“É exatamente disso que estamos falando. No caso, seu super poder você já tem. Faça uso dele ou passe o resto da sua vida vivendo como um porco. E eventualmente morrendo como um.”
“Qual é o meu superpoder, cara? Te deram Santo Daime no QG da CIA ou algo do tipo?!”
“O que é que te motivou a passar noites e noites em claro, sábados e domingos sentado em frente à tela de um notebook de segunda mão que ligava e desligava o tempo todo mesmo quando tinha uma lista de coisas para fazer do tamanho de um rolo de papel higiênico? Por onde é que você expulsou de dentro de si tantos demônios? O que foi que te manteve são e vivo quando você atravessou aquele deserto que parecia não ter fim?”
Cerveja e cigarro, pensei de brincadeira. Eu sabia do que ele estava falando. Ele estava falando disso que você está lendo agora.
“Ninguém lê aquela merda. Às vezes parece que eu estou tocando uma punheta em homenagem ao nada.”
“Alguém eventualmente lê.”
“Quer dizer que é só eu continuar escrevendo e eu posso fazer parte do serviço ultrassecreto americano?”
“Esqueça da parte do serviço secreto. Nós estamos falando de uma coisa muito maior.”
“Certo. Você vai me dizer quem é afinal de contas ou eu vou ficar aqui preso nessa cadeira pelo todo o sempre tendo a conversa mais maluca da minha vida?”
“Meu nome é Miguel.”
“Ah. Como o arcanjo.”
“Exatamente. Miguel, O Arcanjo.”
“Esse é seu nome? Que coisa mais cafona.”
“Meu nome é Miguel; arcanjo é a definição do que eu sou”, respondeu irritado.
“Você é maluco, né?”
“Você não consegue levantar da sua cadeira por nenhuma razão aparente, diz que está com o “rabo colado nela”, e o maluco sou eu?”
“O que mais você consegue fazer?”
“O que você quer que eu faça?”
“Pode parar o tempo?”
“Não existe tempo.”
“Legal. Tecnicamente este tamborete onde o meu rabo está colado também não existe; na verdade é um amontoado de átomos tão aglomeradas que faz isto parecer com um banco. E por isso você também não pode fazer ele sumir?”
Num piscar de olhos eu caí de bunda no chão. Copo estourado no chão e uma mancha de cerveja enorme na frente da minha bermuda, como se eu tivesse me mijado todo e caído bêbado no chão. Velhos com dentes podres nas bocas bebendo a aposentadoria riram alto da cena.
Ser humilhado por forças invisíveis na escuridão de um quarto escuro eu até aceitava, mas humilhação pública nunca foi o meu forte.
“Tá de sacanagem comigo, doido?” Me levantei e dei um empurrão em Miguel, que caiu do tamborete que nem bosta, sujando todo seu terno de cerveja.
“Como ousas me tocar?”
“Ousas é o caralho! Cai dentro!”
Miguel se livrou do blazer e da gravata. Arregaçou as mangas, revelando braços fortes e se colocando em guarda baixa. Tinha aproximadamente um metro e noventa. Eu com os meus um e sessenta — de tênis — não sabia por onde começar. Testei um jab, ao qual fui correspondido com um direto no meio da testa. Parecia que tinha sido acertado com um saco de arroz bem no meio das ideias; meu pescoço estralou de tal maneira que eu achei que tinha se quebrado. Retomei a minha guarda, dessa vez bem alta estilo lutador de muay thai. Ameacei outro jab, e o acertei com um chute frontal na boca do estômago. Se arqueou. Então apliquei-lhe um telefone e uma joelhada bem no meio da fuça. Cambaleou para trás e eu vi a situação perfeita para dar um giro no ar e lhe aplicar uma voadora... e esqueci que eu não tinha mais quinze anos de idade. O que saiu foi uma voadora meia bomba que não acertou em nada, e eu caí no chão que nem bosta. Uma velha gorda usando um vestido de oncinha vermelha soltou uma risada chiada de anos e anos de cigarros do Paraguai e cerveja Schin em troca de sexo. Me levantei envergonhado. Miguel levou as mãos ao rosto, constatando que o nariz estava sangrando. Ficou que nem um retardado olhando praquilo, como se nunca tivesse visto o próprio sangue.
“Cê tá bem, cara?”, perguntei.
Fechou o rosto e tomou impulso. Deu um giro triplo no ar e me acertou no meio do peito com uma voadora de verdade. Voei uns seis metros e fui aterrissar em uma pilha de lixo do outro lado da rua.
É isso aí, acabou, pensei.
Não conseguia respirar direito e o meu coração parecia que ia explodir. Era como se sua voadora tivesse feito um buraco no meu peito, e eu tinha medo de olhar para baixo. Pelo menos eu morreria em combate; algo com o que eu sempre sonhara. Não queria uma morte idiota sentado numa latrina, ou, obviamente, um câncer acabando comigo em cima de uma cama de hospital durante meses e meses a fio. “Viva como um vilão, morra como um herói”: este fora o meu lema de tempos idos.
Miguel se aproximou de mim, e a expressão furiosa em seu rosto deu lugar a um olhar cheio de algo que parecia ser pena (ou enjoo...). “Francamente, eu esperava mais de você”, disse, e me deu as costas.
“Vá a merda, desgraçado.”
Começou a caminhar.
“Isso mesmo, seu cagão, me dê as costas e saia andando mesmo.”
Continuou caminhando.
“Tua mãe tá na zona e teu pai é o maior veadão enrustido.”
Parou de caminhar e se virou para mim.
“O que foi que você disse?”, gritou enfurecido.
Lá vamos nós de novo. Lutei contra a dor horrorosa que sentia no peito e contra sacos de lixo, e me pus de pé... e aí algo muito estranho aconteceu: de repente o céu mudou de cor; antes cinzento, agora era azul claro sem nenhuma nuvem. O bar não estava mais lá, a rua não estava mais lá, não havia o menor sinal de humanidade em lugar nenhum; era só areia até onde eu conseguia enxergar. Era o deserto. À minha frente somente o sujeito enfurecido que dizia ser um anjo ou alguma coisa assim.
“Vai pagar pelas suas palavras, seu verme.”
“Claro que sim, amigão.”
Fingi que estava gravemente ferido em decorrência de sua voadora; um dos braços levantado em guarda e o outro envolvendo meu tórax. Defendi alguns jabs e tomei alguns outros sem contra atacar; quando achei uma brecha, puxei-o pelo colarinho, baixei a cabeça e seu nariz veio de encontro ao topo da minha cabeça dura. Seu nariz já quebrado, meio que descolou de um dos lados jorrando sangue. Busquei a finalização com um uppercut, que apenas resvalou no canto de seu queixo, mas o bastante para que eu conseguisse uma brecha para com o outro braço encaixar na sorte uma cotovelada na lateral de seu pescoço. E ele, lindamente, foi ao chão. Então comecei a chutá-lo de bico como se fosse uma bola na marca do pênalti. Numa dessas ele agarrou o meu pé e me puxou para cima, mantendo-me suspenso no ar.
“Criatura insignificante! Pensa mesmo que é páreo para mim?” Seus olhos agora estavam em chamas e sua voz soava cavernosa, vinda de todos os lugares.
Me soltou de ponta cabeça no chão. Agarrei-o pela perna e cravei meus dentões em seu tendão. Ele gritou e começou a pisar na minha cabeça com o outro pé. Eu abracei a sua perna e não soltava de jeito nenhum. Então ele, com um simples toque do dedo indicador, deslocou a minha coxa.
Porque não fez isso antes e porque o fez em minha coxa e em nenhum outro lugar é uma dúvida que me assombrará para o resto de meus dias.
O dia começou a clarear.
“Deixe-me ir, pois o dia já desponta!”, gritou.
“Não sem antes me dar sua benção!”, gritei.
“Qual é o seu nome?”
“Guilherme Samuca.”
“De agora em diante se chamará Gilberto Sakurai, porque você lutou com Deus e com homens, e venceu.”
Um suave torpor tomou conta de meu corpo. Ali caído pensei ter visto o homem criar asas e sumir no horizonte. Dado o absurdo de toda aquela situação, me pareceu a coisa mais natural do mundo.
E então começou a chover. Eu não conseguia me levantar e recebia as gotas de água com a boca. Tinha sido deixado para morrer ali, certamente. Pelo menos eu conseguira minha benção; talvez não fosse para o inferno quando morresse, no fim das contas.
A chuva foi aumentando rapidamente, e de tal maneira que inundou todo o deserto, e logo eu estava me afogando em meio a um dilúvio; destroços, animais e homens rodopiavam comigo dentro do mar revolto. Eu ia morrer sem ter tido direito a uma última foda, um último passeio com o meu cachorro, nem mesmo uma cervejinha acompanhada de asinhas de frango feitas no forno por uma mulher de saltos altos vermelhos vestindo somente um avental, nem um último cigarro, sequer um último escrito imortal para a posteridade antes do suspiro final...
Que suspiro?
Eu ia morrer afogado; o segundo tipo de morte pior — o pior era ser enterrado vivo. O que significava que eu não iria morrer tocando fogo em mim mesmo sentado na posição de lótus sem mover um só músculo em prol de alguma causa nobre, e eu não iria morrer me jogando em frente a um ônibus para salvar uma criança de um atropelamento, e eu não iria tomar a metralhadora de um militante do Estado Islâmico durante um atentado e caçar cada um deles até dar cabo de toda aquela corja por toda a minha vida, e eu não iria afundar um navio baleeiro após 3 meses de perseguição interrupta, eu não iria...
Fui enredado por uma rede e puxado para cima. De dentro de uma gigante arca fedendo a zoológico um velho de barba gigante todo descabelado vestindo um saco de estopa sorria para mim com seus dentes faltando.
“Acorda, rapá!”
Mas hein??
“ACORDA, FELA DA PUTA!”
Abri os olhos e estava de volta ao bar de Waldomiro.
“Fela da puta é você...”
“Não, é você!”
“Você!”
“Você!”
“Teu pai, aquele corno!”
“Tua irmã, aquela rapariga véia!”
“É a tua!”
“A tua!!”
“Pensei que tu tinha empacotado, japonês!”
“O que aconteceu?” Me dei conta de que estava com as roupas molhadas.
“Você ficou um tempão aí debruçado em cima do balcão! Achei que tava apenas dormindo; depois comecei a ficar preocupado! Desculpa aí pelo banho, mas tu não acordava de jeito nenhum!”
“Não, tá tudo certo. Desculpas peço eu. Quanto lhe devo?”
Ele pegou o papel com a conta e me deu. Deixei uma bela caixinha.
“Melhor maneirar aí com a cachaça... e sei lá mais o que você anda tomando.”
Ele já fechava o caixa e meio portão já estava baixado.
Saí e acendi um cigarro, pensando em tudo que eu havia sonhado...
Sonhado?
“Escute”, chamei-o da porta. “Havia um cara de terno sentado do meu lado?”
“Oxe, mas que conversa é essa?”
“Não?”
“Tu passou a tarde toda aí sentado sozinho sem falar com ninguém. Aliás, passou quase a tarde toda aí dormindo.”
“Tem certeza disso?”
“Você bebe e eu que fico louco?” Riu.
“Tá certo, Waldomiro. Até semana que vem. Desculpa qualquer coisa.”
“Se cuida.”
Caminhei me sentindo bem como não me sentia desde antes de ter que trabalhar para pagar minhas próprias contas. Exceto por uma dor incômoda na coxa que me acompanhou desde então.
Gilberto Sakurai “O Maldito Escritor” — 06/06/2016
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