Uma dica: Nunca de bruços
Naquela noite, apesar de cansado, eu estava resignado a escrever um conto. Com muita coragem, então, sentei-me frente ao computador e abri um bloco de notas. Francamente, nunca tive disciplina para escrever, mas quando me dava na telha...bem, era assim que eu agia: acomodava-me convícto, pensava em algo interessante e deixava as palavras simplesmente surgirem.
E por vezes até que deu certo. Alguma coisa saia.
Infelizmente, aquela noite não foi como uma dessas vezes. O cansaço me traiu. E na briga ferrenha entre meu desejo e minha disposição, quem perdeu fui eu. E por nocaute. Caí com a cabeça pesada sobre a mesa do computador. Que baque! Dormi ali mesmo. A ultima coisa que lembro ter visto foi a luz forte da página em branco.
Horas mais tarde acordei com uma baita dor no pescoço. Recompus o corpo esfregando os olhos e esticando os braços. Ouvi tudo em mim estalar. Então levantei e dei dois passos sutís, alongando o corpo, de fato. Depois tornei à cadeira. Foi quando vi que a hora avançada já não era para mim. Ameacei desligar a máquina e me render. Eu merecia descanso.
Porem, antes que eu pudesse concluir minha digna intenção, percebi, de relance, que a página em branco não estava mais em branco, para meu assombro. O bloco de notas que antes vazio, agora estava cheio de palavras em ordem, formando frases e até parágrafos. "Que é isso?", indaguei a mim mesmo, tão espantado. E, claro, não obtive resposta.
Instintivamente, levantei-me muito depressa e fiz uma breve revista na casa, que não deu em nada. Na minha cabeça, alguém – e jamais eu conseguiria explicar o motivo – poderia muito bem ter invadido e deixado aquelas palavras, aproveitando-se da minha guarda baixa. Isso porque já se foi o tempo em que invasores furtavam e roubavam. Agora eles escreviam em campos alheios. Claro, eu só pensei bobeira.
Voltei para o quarto e me sentei outra vez em frente ao computador. "Que aconteceu aqui?", dessa vez eu não sabia se sentia medo ou curiosidade. Medo pelo mistério do autor anônimo ou curiosidade em relação ao teor do próprio texto. Na certa que era medo. Mas, pela circunstância atenuante – as portas e janelas sem qualquer sinal de arrombamento, significando que eu estive sozinho o tempo todo –, senti que o tal medo foi perdendo tamanho e espaço para a minha curiosidade, que não era pequena. Alimentando-a, então, comecei logo a ler. E o que li me deixou estonteado e sem dormir o resto da noite. Dizia assim o texto:
Meu caro amigo, serei breve, antes que você acorde: havia alguém aqui no quarto que queria te fazer o mal mas eu não permiti. Tivemos uma discussão e depois partimos para a briga, de fato. Eu te protegi com unhas e dentes. Mas confesso que foi difícil. Ele era forte e estava decidido a te prejudicar. Via-se em seus olhos a obscenidade que só os maus-carateres comportam.
Ele dizia repetidas vezes que você seria dele essa noite. Sorte a sua eu estar passando na exata hora em que ele saía de debaixo da cama já pronto à maldade, daquele jeito que você já deve estar imaginando. Que cena horrível!
Foi aí que eu tive que tomar a sua causa. Eles não brincam, nunca. De qualquer forma, tudo isso já passou e você pode, agora, respirar aliviado. E dormir também, mas somente na cama, e nunca de bruços. Até mais.