Instinto animal
Tem um amigo. Confidente. Vira-lata. Não importa a falta de raça. É o refugo. O refúgio. A fortaleza. Chama-o carinhosamente de "Dody". Homenagem sabe-se lá a quem... Cor-de-areia, lá vai ele. Faceiro. Fagueiro. Carinhoso com crianças, como todo bom cão.
- Acho que Deus põe uma mão singela neles - balbucia, praticamente latindo junto.
E olha que ouvir qualquer som daquele animal é fato raro.
- Criado em apartamento, sabe com é, né? - interroga a qualquer um que se atreva a questionar a relação "elevador-adoração".
Tem uma peculiaridade: o bicho simplesmente ama futebol. Aquele onze-contra-onze das quatro linhas o deixa perplexo. Inexplicável a química. Só acontece.
É ligar o rádio ou a tevê, e pronto: senta ao seu lado. Olhar fixo, ouvidos atentos, só se mexe na hora do gol. Uiva feito lobo ao anoitecer.
A preferência clubística é por tricolores. Ninguém nunca entendeu o porquê. Certo é que Fluminense, São Paulo, Grêmio, Bahia e outros três cores o excitam. Provavelmente, até, nenhuma ciência é capaz de decifrar tal identificação. Veterinários, psicólogos, fiscais da natureza e curiosos em profusão já tentaram, aos montes, elaborar teses sobre. Chegaram a uma conclusão: é fato absurdo. Só vendo e assistindo para crer.
Evidentemente, há referência de criação. O dono é desportista-maníaco. Vê da derrota do Bayer Leverkusen até a goleada do Comercial, de Ribeirão Preto. Sim, tem desde Campeonato Alemão até a Segundona Paulista no fim de semana televisivo.
É mais um domingo. Não tem decisão. Nem definição de classificação para quadrangulares, oitavas-de-final, ou coisa que o valha de absolutamente nenhum torneio interessante ou desinteressante. Nem mesmo algum jogo que defina passagem para a fase seguinte da democrática e encharcada Copa do Brasil. Até porque, os confrontos da segunda competição mais importante do país (quase em 100% dos casos) acontecem às quartas e quintas-feiras.
Tudo um tédio. Mesmo assim, controle remoto à mão direita, pula de canal-em-canal atrás de uma partidinha. O fiel escudeiro, ali, quieto feito monge tibetano em meditação. Acha um antigo gol de Kaká pelo Milan... Olha desconfiado as estrelas do Real Madrid...
Vê uma matéria especial sobre Serjão, um camarada obeso que ficou famoso.
- É empresário e arrendou um clube no Distrito Federal para brincar de goleiro - protesta.
De repente, toca a campainha! Um colega de trabalho, bola embaixo do braço, fazendo o convite irrecusável.
- Você tem que vir com a gente. Tá faltando um - convoca.
Tira do armário o velho par de luvas pretas, com listras diagonais vermelhas e um quase imperceptível furinho no couro que vai proteger o dedo indicador esquerdo. Calça as chuteiras prateadas, põe o blusão de mangas-compridas e assobia. Vão os três para o campinho esburacado, praticamente de terra batida, ao lado do condomínio.
Chega embaixo-das-traves. Amarra a corrente junto ao "poste direito". E alerta ao cúmplice de quatro patas: "Cuidado para não levar uma bolada", preocupa-se, logo virando, saliente, e esfregando as mãos no aquecimento.
Pelada disputada. De repente, falta dentro da área! Dito e feito. Um "canudo" que vai direto no canto. Nem se mexe. Só ouve o latido. O danado passou pela lateral da rede mal colocada nos grampos junto à grama rala aproveitando-se do fato de haver um furo enorme. Aplauso de todos. Virou o herói do mês.
Haja paciência, agora, para ouvir a história de um certo cachorro que defende pênalti. E ai de quem disser que foi puro instinto animal.