QUANDO CELECANTOS PROVOCAM MAREMOTOS

Chamava-se Silvio e ganhou uma pipa de presente. Um losango verde com fitinhas azuis nas bordas inferiores.

Quis empinar o presente. Enrolou linha de costura em uma lata de óleo vazia. Pensou no visual. Correu ao terreno baldio próximo de sua casa.

Verificou o local. O calor da tarde havia misturado os vários odores que o ambiente produzira pela manhã. Cheiro de lama, capim e do esterco deixado pelos dois cavalos que ali pastavam. Mas o céu estava sem nuvens. O menino sentiu-se bem. Olhos abertos. Iriam voar.

Sílvio fixou-se no capinzal à esquerda. A pipa, o papagaio, a estrela, a arraia, o losango verde com arranjo de fitinhas azuis subiria por ali. O brinquedo ganhava vida e recebia nomes.

Examinou a lata. Latas são apetrechos valiosos nos “empinamentos”. Içar pipas demanda aparelhagem.

Vira a habilidade de outros meninos. Erguiam papagaios lá no alto. Tão lá no alto que os trecos pareciam botões de camisa.

Os moleques nunca emprestaram as linhas. Nem mesmo para um toque, uma puxada.

Sílvio levou a arraia até o ponto escolhido, desenrolou o carretel, correu contra o vento, ajeitou, esticou o fio, calculou a altura e não acreditou. Assustou-se. O troço subiu quarenta, cinquenta metros.

O empinador imaginou os mil lances que viriam. Sua respiração percorreria a linha. A alma, o coração, mais cuidadosos, olhos abertos, subiriam depois. A alma de Sílvio veria o rosto de Sílvio na outra ponta. Lá no chão. Quem seria o papel de seda?

Superlouco o equilíbrio no espaço. Planadores, aves, varetas pregadas em transparências sustentadas por invisíveis camadas de ar.

O papagaio subiu muito, e o menino dobrou as pernas diante dos cálculos da altura, da pressão atmosférica, da velocidade do vento. Tudo era matéria da escola, ficaram no chão.

Sílvio quis desistir da empreitada e guardar a pipa. Não percebeu, e ela estava perto do cabo de alta tensão no fim da rua. O cabo parecia quente o bastante para enredar carretéis, magnetizar quadrados, quebrar varetas.

Largou a lata e soltou a linha no que podia soltar, correu pelo meio do mato e a arraia nadou longe, sobre as redes de transmissão de energia. Foi a maior emoção.

Sílvio recuperou a lata e tranquilizou-se. A pipa foi salva. Estabilizou-a em uma distância segura para observar o fio elétrico do qual escapara. Olhou-o bem e contou o resto de sete quadrados e muitos pares de tênis suspensos pelos cadarços. Os tênis se chutavam. Até enforcados brigam por espaço.

O menino então caiu em si. Vencera a alta tensão. Sua arraia ganhou em voltagem com apenas um carretel de força.

A pipa voou para a esquerda. Aquilo se chamaria movimento de rotação. A linha seria o Meridiano de Greenwich, o grau zero, a referência para os pontos terrestres.

Sílvio caminhou pelo terreno. Soltou a linha até sobrar apenas o nó sobre a lata. Olhou para o lado e viu a agonia de outro papagaio. Ainda um papagaio. Ele se debatia preso no poste com meio metro de linha disponível. Raspava as arestas no concreto. Descansava, asfixiado, para em segundos, com um resto de força, tentar novamente escapar. Inútil. O poste mataria a suposta ave. Rasgaria a seda até expor o esqueleto final, a cruz de varetas para sempre exposta à chuva e ao vento.

Sílvio alarmou-se diante da hipótese do assassinato do seu amigo. Um toque e ele vinha. Se subisse, acenava.

Mas a possibilidade de morte era muito remota. A pipa losango verde com fitinhas azuis possuía linha reforçada. Outra linha curvava a vareta horizontal e a seda recolhia o ar. Todo o engenho proporcionava a sustentação e o voo.

A pipa pairou sobre o milharal de antenas. O menino queria liberar mais linha. Ver a sua casa e lá do alto toda a extensão do Córrego “Água Espraiada”.

Sílvio estava no auge quando sentiu que algo tomaria conta da abóbada celeste. Ele se deixou arrepiar, preparou-se para o susto, e outra pipa, um maranhão rubro-negro, saiu dos telhados.

O “maranhão” era uma “ave” tão grande. A pipa de Silvinho tornou-se algo simples demais. Transformou-se em página de jornal dobrada como um cone.

O maranhão rubro negro agiu. A rabiola imensa serpenteou no ar. Decerto algum menino comandava. Muita linha saía da engrenagem.

O gavião subiu, ficou pequeno, ao alcance de trovoadas, depois desceu rápido, manobrou para a esquerda, bicou o nada, olhou em volta, percebeu o papagaio primeiro da vida de Sílvio e cortou a linha. Decepou o fio de contato. Uma obra de puro esporte como tiro ao pombo.

A pipa contorceu-se, girou perdida sobre árvores longínquas, onde finalmente desapareceu.

Sílvio sentiu que perdera a cabeça. Puxou a linha, veio esterco. A linha grudava no barro. Enroscou-se aos cavalos.

Silvinho quis se mexer, encontrar o agressor e destruir a sua linha untada em vidro fragmentado. Por que ele fizera aquilo? Qual o prazer no cerol? A serventia da degola.

Terminou por entender o verdadeiro recado do incidente. Algumas crianças preferem suspirar. Mal conseguem sustentar um balão de plástico cheio de gás. Outras sabem voar, ganhar nacos do espaço com suas pandorgas e cortar pescoços.

Esse se tornara o segredo dos voos. Começar a decapitar, cortar pescoços, mesmo que não se identificassem os tipos de pescoços.

O degolado guardou o carretel e voltou para casa. O céu perde a graça, quando se descobre que o calor vem das gargantas.

No caminho, finalmente entendeu o sentido da frase que picharam naquele muro: “CELECANTO PROVOCA MAREMOTO”.

Ele vira a “degola”. Ela deveria ser matéria obrigatória no ginásio. Conjugar verbos que estrangulam o pensamento, descobrir o “x” da equação é decapitar cabeças.

Bustos de cera sempre permaneceriam de prontidão na sala vizinha.

Para a próxima aula: o corte.

DO LIVRO: "AS CRIANÇAS DO GENERAL MÉDICI"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 22/06/2016
Reeditado em 02/09/2018
Código do texto: T5675762
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