A revolta dos objetos
Completamente despido, Cícero deitara-se no chão em posição fetal, imóvel durante a maior parte dos dias e das noites, não havendo a sua volta nenhum objeto na pequena e fria cela do Sanatório onde estava.
Não como castigo por ter reagido com violência em algum momento de sua estada no Sanatório, desde que lá chegara havia uma semana, levado por seu único amigo graças a sua incômoda história de maus relacionamentos com as pessoas e, mais estranhamente, com os objetos.
Sim. Porque Cícero, em seus relacionamentos com as pessoas, ao contrário de seu pretendido absoluto controle sobre os objetos, admitira não poder ter controle sobre elas, forçá-las obstinadamente a fazer o que considerava correto e absolutamente necessário a pretensa administração mais que perfeita da dinâmica cotidiana, como quisera fazer quando em família. E não apenas em convivências com sua família, mas com todos com quem dividia a existência, já que tinha certeza de que não havia formas melhores de organizar as coisas e, mais, o comportamento das pessoas senão como ele fazia consigo mesmo e com suas coisas. E ninguém discordava de que a casa de Cícero era um primor de inigualável organização, tendo ele que se separar da esposa e dos três filhos a viver na harmonia que, somente estando sozinho – pensara – ele conseguira usufruir em torno de si.
Pelo menos durante algum tempo.
- Não gosto quando você arruma a casa ou lava o banheiro; mesmo reconhecendo que ninguém o lava e organiza melhor do que você – reclamava sua ex-mulher, incomodada com a forma obsessiva como Cícero dispunha seus potes de cremes, vidros de perfumes, recipientes de xampus e condicionadores ali, “oprimidos”, enfileirados no canto da pia.
– Parecem condenados à morte num pelotão de fuzilamento! – observava ela, e depois argumentava que não lhe parecia normal viver numa casa sempre tão cuidadosamente bem arrumada, pois lhe dava a sensação de impropriedade, de que na casa não morava ninguém, o que, para Cícero, não passava de uma grande asneira.
Além disso, não suportava mais a vigilância doméstica de Cícero e suas reclamações infindáveis, pois que ela e seus filhos “jamais” – era o que Cícero determinara – “jamais” deveriam deixar absolutamente nada fora de seus lugares, admoestação que, diária e inutilmente repetida, lhe era contrariada por aquele bando de desorganizados com o qual tinha sido obrigado a conviver por anos a provocarem aquela angústia tão profunda que o motivava ao desejo crescente de separar-se daqueles que, recorrentemente desobedientes, deixavam sapatos e meias e camisas jogadas pelo chão da casa, bolsas sobre o sofá, sacolas de compras na poltrona, toalhas molhadas em cima das camas, pratos e copos sujos nos quartos, luzes, televisores, ventiladores, ar-condicionado e aparelhos de som inutilmente ligados, livros fora das estantes, portas de armários, guarda-roupas, gavetas e a porta da geladeira abertas junto com torneiras a desperdiçarem água, garrafas e recipientes contendo alimentos e seus temperos sem as tampas, como molhos de chaves e óculos em recantos obscuros da casa para, depois, pedirem-lhe a que os ajudasse a procurar qualquer coisa que haviam perdido somente por absoluta falta do cuidado, da organização tão justamente venerada por Cícero – quando, então, “procurar” lhe era o mais detestável dos verbos, mais gigantesca razão de perdas do inexorável Tempo que existia tão somente para que, segundo a segundo, minuto a minuto, hora após hora, pensava Cícero, fosse radicalmente bem aproveitado – já que definitivamente se convencera de que “tempo é dinheiro”, dinheiro que Cícero, trabalhando duro, e muito mais por causa de suas manias, tinha certeza de ganhar sempre menos do que seria preciso ao atendimento da necessidade de repor e repor e repor constantemente as inúmeras perdas que, segundo a segundo, minuto a minuto, hora após hora se processavam em todos os ambientes onde ele era obrigado a estar a suportar todo aquele secular festival de desperdícios.
- O senhor sofre desesperadamente de “TOC”, seu Cícero: “Transtorno Obsessivo Compulsivo” – sentenciara-lhe um psicólogo que aquele seu único amigo indicara a que Cícero pudesse dar-se conta de sua doença e, assim, iniciar um tratamento, depois de percebê-lo apanhar um clipe que encontrara no chão do consultório, soprá-lo, limpá-lo com a ponta da camisa e pô-lo em cima da mesa com o mesmo cuidado compositivo que um artista a dispor os elementos à construção de sua obra.
Sim, porque sua ultra-obsessão pela organização não poderia ser outra coisa senão o sintoma de uma grave enfermidade – embora ninguém houvesse ainda diagnosticado como evidentemente doente todo aquele fenomenal contingente de pessoas adeptas do absoluto relaxamento que, em todas as famílias, em todos os recantos do mundo lhe pareciam não estar nem aí para o exercício das minuciosas atitudes organizacionais que Cícero tinha certeza de ser nada, nenhuma “doença”, além das intenções absolutamente necessárias a disposição ideal aos produtivos convívios com pessoas e objetos.
- Tratem com esmerado cuidado as coisas e todas sempre lhes funcionarão bem – garantia Cícero aos seus filhos e colegas de trabalho, mesmo que lhe parecesse óbvio que, ainda que as pessoas fossem mais importantes que os objetos, e ainda que muitas mulheres fizessem questão de se parecerem mais com coisas que com pessoas, nunca lhes seria fácil promover o bem para todas, já que, ao contrário dos objetos – que, ele tinha certeza, não tinham vontades próprias – o bem para uma pessoa nunca seria o mesmo para outra; mesmo que, para Cícero, não fosse difícil reconhecer que qualquer atitude a aspirar promover a harmonia, “o exato equilíbrio das partes ao pleno funcionamento do todo”, quer para objetos ou pessoas não devesse nunca ser desconsiderada algo inquestionavelmente bom e capaz de ser realizado.
Dessa forma, depois que seus filhos apareceram em casa cada um de posse de uma irritante bolinha de borracha – porque elas, sim, pareciam ter vida própria quando, “teimosas” saltavam para cima de seus vasos de porcelana retirando-os de seu sossego e fazendo-os espatifar, ou quando quicavam desviando dos alvos para onde seus filhos as atiravam a “deliberadamente” fugirem pelas janelas e se esconderem no jardim – Cícero resolvera que, tanto para a conservação de sua sanidade como para a de sua família, o ideal seria ter sua própria casa onde poderia guardar e preservar e encontrar seus objetos sempre nos lugares onde ele os pusesse, sem que interferências pudessem fazê-lo desesperar-se constantemente a procura de algo fora de lugar ou, pior, quebrado; ainda que, fora de casa, ele não fosse capaz de fugir da genérica doença, sim, a doença do relaxamento que, como um vírus devastador, parecia ter contagiado a todos no mundo a fazê-los desconsiderar as mais simples atitudes que, de boa ação em boa ação, promoveriam finalmente a harmonia global tão aparentemente desejada por todos os que, comumente, antes de procurar originá-la em si e para si mesmos, exigiam-na ser instaurada no mundo por seus governantes.
Mas, infelizmente, para a crescente desesperança de Cícero, mesmo sozinho em casa procurando esmeradamente exercer sua dinâmica organizacional, aos poucos ele descobrira que, a despeito de sua obsessão pelo controle das ações das pessoas e das disposições das coisas, não poderia controlar ele mesmo em sua crescente irritação frente às suas próprias imperfeições e a “insubordinação” de seus objetos que, de simples interruptores ao seu bem cuidado carro, lhe pareceram começar insistentemente a teimar contrariá-lo.
- Malditos fios! – esbravejou ele um dia, atirando o carregador de seu celular contra a parede no início do que percebeu ser “a revolta dos objetos” as suas determinações de comportamentos, pois lembrava ter enrolado cuidadosamente o fio de seu aparelho telefônico em volta do carregador de sua bateria e, depois de ter precisado dele retirando-o de sua maleta, onde o guardara cuidadosamente, encontrou o fio entrelaçado, cheio de nós – e como ele detestava desatar nós! – assim como outros fios de outros de seus equipamentos eletrônicos, que “teimavam” sair da condição organizada em que ele os havia deixado.
E somente para torturá-lo – como ele começou crer definitivamente ao mostrarem-lhe que, diferente do que acreditava, ele não poderia mesmo ter poder de controle sobre coisa alguma na vida, sem entender até então porque todos se haviam convencionado mencionar ideias, ações, pessoas e qualquer outra coisa como “coisa”.
Aos poucos, ao longo dos dias, quando decidira tirar férias a descansar de suas convivências conflitantes com os colegas de trabalho, e com o resto do mundo – porque, por suas obsessões, ele estava a ponto de perder o emprego – outros objetos além de “fios carentes” lhe pareciam ganhar vida, e então as luzes da casa “deliberadamente” se queimavam uma após outra quando ele tentava acendê-las e, depois, os interruptores deixavam de funcionar.
Copos, xícaras, pires e pratos “teimavam” em lhe escapar das mãos a se espatifarem no chão – fora o que garantira ao seu único amigo numa visita que ele fizera à casa de Cícero, preocupado por ele não atender o celular – quando, revoltado, ele procurava inutilmente abrir a torneira da pia da cozinha para lavá-los e, depois de desistir de lavá-los – pois as torneiras “teimosamente” emperravam – ao procurar preparar o jantar a utilizar os poucos pratos limpos que lhe restavam – tendo constatado “a fuga” de alguns de seus talheres – descobrira que as bocas de seu fogão haviam entupido, enquanto as portas dos quartos batiam violentamente cuspindo suas maçanetas “assessoradas pelo maldito vento”, que também fazia voarem documentos importantes postos sobre sua escrivaninha; vento que ele procurava em vão evitar que entrasse pelas janelas que, “para torturá-lo”, “tinham se recusado” a deslizar em seus trilhos a serem fechadas, além dos “teimosos botões” de suas camisas, que se despregavam delas quando procurava abotoá-los; como os zíperes de suas calças e de suas malas, que emperravam “intransigentes” e terminavam por se quebrar quando os manuseava, mesmo que fossem elementos de calças e malas novas.
O ápice de seu desespero as insubordinações das coisas aconteceu então quando, sentindo “o grande complô” que, para castigá-lo por sua generalizada intolerância ao convívio com tudo presente no mundo, todos os objetos de sua casa “decidiram” parar de satisfazê-lo, Cícero, completamente nu – pois dissera ao psiquiatra não ter encontrado mais em lugar nenhum suas “malditas” cuecas, calças, cintos, camisas, meias, sapatos, pentes ou sua escova de dente, para sempre desistindo de usá-las, e qualquer outra coisa – depois de ter tentado debalde abrir o portão da garagem e constatado que, “cruéis”, os quatro novos pneus de seu carro haviam secado, entrara em casa decidido a “matar” todo e qualquer objeto que encontrasse pela frente, a começar por destroçar uma cadeira de madeira e, com uma de suas pernas, desferiu violento golpe no visor da televisão – que tivera fixado para sempre a tomada no interruptor impossibilitando-o desligá-la, estando emperrado seu controle remoto a impedi-lo mudar de canal e não assistir a programação comercial que, durante vinte e quatro horas por dia, anunciava a venda de valiosos objetos que muitos sonhavam possuir.
E aí seguiu em sua destrutiva tarefa concentrando sua fúria a estraçalhar o resto daquelas coisas que, dia após dia, haviam transformado o que pretendera ser seu “doce lar” em nada menos que a ante-sala do Inferno.
Preocupado com a insana condição de Cícero, depois de dias sem saber dele, seu único amigo decidira ir visitá-lo outra vez.
Depois de ter insistentemente batido palmas na frente da casa, estranhando ausência de uma resposta, sem dificuldade ele abriu uma portinhola que existia no portão da garagem, antes emperrada ao uso de Cícero, que dava acesso a rua e a casa sem que Cícero precisasse abrir todo o portão e entrou, notando os quatro pneus vazios do carro de Cícero, agora, todo coberto de poeira.
Devagar, receando o que poderia encontrar, intuindo o pior viu que a porta principal da casa se quedara entreaberta.
Aterrorizado, descobriu Cícero despido, barbado, pálido, portador de profundas olheiras, trêmulo de fome e frio agachado num canto da casa, cercado pelos cacos de todas as coisas que ele havia destruído e que tão somente haviam existido a provocar suas insatisfações crescentes e que, em sua “justa vingança” contra todas elas, ele tivera “matado”.
Com dificuldade, depois de encontrar um lençol imundo em meio ao caos de que sua casa havia se tornado abrigo, envolvendo-o nele, seu único amigo conseguira erguê-lo a levá-lo para o carro e para o Sanatório, sendo sua cela fria e vazia o único lugar onde, por opção, Cícero se livrara de suas insuportáveis convivências com as coisas.
Pelo menos até que a Morte, mãe de todos os objetos, cedo ou tarde o transformasse em um deles.