O Homem isolado na calçada
De repente estava só. Poderia ser apenas uma leve impressão, olhando ao seu redor, as pessoas, milhares delas, passavam por ele sem que percebesse que estava ali. O olhar vagou ao longe, pareciam ondas humanas, invisíveis. Caminhava com um pouco de dificuldade, com os anos á pesar-lhe sobre os ombros. Um manto negro, como profecia, cobria seus ombros cacundos. E as pessoas continuavam a passar por ele, apressadas, pareciam fugir. Ele sabia, fugiam do futuro incerto, que se escondia logo depois da esquina. O rumo incerto. Ninguém por perto, só corpos invisíveis. Deitou na calçada, jogando de lado seu chapéu, roído pelos dias, para ver se alguma alma caridosa lhe estendesse a mão com um gole de água ou um misero pão. Mas suas suplicas esvaem-se por entre as almas invisíveis, se esgueiram por entre corpos irascíveis. Não vale nada mesmo esta vida. Vale o seu chapéu velho rasgado, jogado no chão, sem ter ao menos uma moedinha desvalida. Seu mundo termina ali, onde deveria ser o começo. Ele permanece sentado na calçada, esperando. Esperando. Os minutos passando, e ele esperando. As pessoas passando, e ele esperando. O mundo girando e ele esperando. As horas passando ...passando ...lentas ...lentas ...e ele esperando... esperando. A chuva vai caindo, as pessoas correm fugindo dela, as pessoas vão sumindo, e ele esperando. Espera por uma mão, que lhe seja estendida, seja com água, ou seja comida, ou apenas uma mão, mesmo que com uma única pretensão, a de levantá-lo dali. As águas correm pelo rosto repleto de rugas secas, sem saber o que são as lágrimas ou se é a chuva.
Fica sentado imóvel na calçada esperando. Os dias vão passando...passando. Passam lentos, martirizando ainda mais seu cansado corpo, enquanto ele fica esperando... Sem esperanças, fica olhando as pessoas retomarem suas rotinas robotizadas, sem olhar para nada, sem olhar para o lado, para ver o pobre diabo jogado na calçada. Um odor fétido circunda o estranho ser à beira do caminho, onde todos passam, onde tudo passa, uma onda humana invisível, surfadas com maestria, por pastores de ovelhas desgarradas, e ele sem uma lãzinha refugada, para esquentar seus pés nus sobre a pedra gelada.
Os meses vão passando... e o homem sozinho no meio da multidão, á rua vai sumindo, ele vai ficando ali, só, sentado na calçada á espera de um manto desgraçado, sem uso, para que possa cobrir suas dores. As feridas abertas pela solidão sorriem para ele, como se velhos amigos fossem. A calçada aos poucos vai se tornando intima, a ponto de confessar velhos segredos. As formigas, tão egoístas, não dividem os farelos de pão, enquanto usam seus magros dedos, como velozes auto-estradas. Os pombos inquietos desfazem-se de seus dejetos, em cima dele, sem pudor nem compaixão, do ser que vai aos poucos se enraizando ao chão, esperando pelos cupins que devorarão seu tronco, os galhos, as raízes e as folhas.
Os anos vão passando, e a carga aumentando, as pessoas se multiplicando, agora da calçada ele já nem vê a rua, as pessoas passam apressadas, pisam nos seus pés, que já perderam a sensibilidade, no inicio meses atrás, ainda sentia os cães lamber o sangue das pisadas alheias nas pernas, agora os poucos cães que conseguiam chegar queriam roer sua canela exposta. Ele até tenta levantar a mão para dar um tapa no animal, mas algumas formigas já devoraram suas forças.
Um político em campanha, fala aos transeuntes, que ali está uma pessoa que precisa de ações governamentais para sair daquela situação. Até que enfim alguém olhou para ele. As pessoas comentam o horror daquele resto de corpo jogado na calçada, e que vai se deteriorando dia após dia. Até as eleições sempre tem alguém ali fazendo campanha, pessoas comentando, câmeras e microfones, que afugentou o cachorro faminto que agora se esconde debaixo de uma lixeira. Só um rato, agora, lhe roí a canela, dentro do osso onde ninguém vê. Um padre faz o sinal da cruz, um pastor lhe dá uma benção divina, e assim vários representantes do superior passam, e o homem permanece ali, agora cada vez mais corroído.
O prefeito começa a ficar impaciente com o interesse do país inteiro sobre aquele homem derretendo na calçada. O homem virou capa de revistas nacionais e internacionais, os jornais escritos e falados, as emissoras de radio só falavam disso, até as partidas de futebol foram paralisadas para minuto de silêncio em homenagem. Em cada esquina, salões de beleza, bares, barbearias, cafés, reuniões de intelectuais, teses de doutorandos, redações de vestibulares e concursos, sessões plenárias, só se falava no homem exilado na calçada. Um vereador propõe uma taxação para moradores de calçada, outro taxar o odor fétido que está causando ao centro, outro propõe levá-lo para outro município e outro ainda propõe coloca-lo na prisão por fazer tumulto em publico e ameaçar o bem estar, a ordem e a segurança dos cidadãos de bem.
Meses mais tarde, passadas as eleições ficaram descansados, já tinham esquecido totalmente o assunto, já não se ouvia mais falar no homem, o cachorro tinha morrido de fome, e agora era comido pelas moscas, e o homem na calçada era devorado pelos ratos, formigas e outros insetos.