Um dia assombroso em minha cidade

Inhapim é uma pequena cidade do interior de Minas de menos de 25 mil habitantes encravada ali à beira da BR-116 exatamente no Km 500 no sentido Bahia/Rio de Janeiro. Situa-se na região do Vale do Rio Doce. Localiza-se a 285 km de Belo Horizonte. Foi nessa cidade que nasci.

Eu tinha entre 11 e doze anos, e meu pai era Encarregado de Obras da prefeitura da cidade, e os pagamentos desses funcionários eram efetuados por meu pai num lote existente ao lado da minha casa. Lembro-me que meu pai espalhava organizadamente todo aquele dinheiro sobre uma grande mesa, notas iguais sobre notas iguais, montes por montes, sendo que na hora de pagar cada um deles, eram aquelas cédulas de maiores valores que ele sempre as pegava primeiras, e ia completando o resto numa ordem decrescente dos valores das notas até complementar todo o salário daquele funcionário, para no final ainda lhes darem algumas moedas. Eu ficava ali colado àquela mesa acompanhando tudo aquilo, pois sabia que no final de tudo, uma daquelas notas de menor valor sobraria para mim. Na realidade, nem era preciso esperar o final, já que parecia que meu pai sempre queria se ver livre de mim naqueles momentos, e bem antes, já passava aquele “meu quinhão”. Então sempre às sextas feiras eram garantidas as minhas Paçocas, Suspiros, Marias Moles e Caixinhas de Sorte, que invariavelmente só vinham uns frágeis anéis.

A Prefeitura pagava semanalmente. Quando por ventura ela não tinha dinheiro, o que não era raro, meu pai garantia e autorizava aqueles funcionários que precisassem adquirir algum tipo de alimento ou outro utensílio doméstico qualquer, que os adquirissem na venda do Sr. Carlindo. Ele era um comerciante que tinha a idade do meu pai e tinha um mau humor incomum, e em tempo integral. Era mal educado e totalmente sem paciência. Odiava crianças, principalmente aquelas que ficavam em volta de seu baleiro escolhendo esta ou aquela bala, e com um dinheiro em mãos que não se conseguiria adquirir mais que duas delas. Muito das vezes perguntávamos o preço de tudo e não levávamos nada.

Ele tinha uma técnica de comercializar que, mesmo eu com toda aquela minha infantilidade e desconhecimento comercial, não achava justo. Em sua venda duas balas tinham o valor como se fosse hoje de vinte centavos, e três o dobro, quarenta centavos. Mesmo sendo um garoto eu via que aquela sua metodologia não deixava com que a matemática se fechasse, não era justa, e demasiadamente prejudicial para o consumidor. No mínimo invertia-se a lógica de ser mais vantajoso para quem comprasse em maior quantidade. Assim eu comprava as duas primeiras balas, e logo após voltava e adquiria as outras duas. Ele virava uma onça, pois sentia que estava sendo trapaceado, e em uma dessas vezes, ele apanhou o dinheiro que pus sobre o balcão para levar a segunda “leva” de duas balas, e ele só me entregou uma. Lembro-me até hoje da expressão velhaca e ardilosa com que ele me olhou. Tive que amargar aquele prejuízo, pois ele era amigão do meu pai, e jamais eu poderia reclamar. Eram sim velhos amigos. Depois deste episódio eu sempre pedia a outro coleguinha que me substituísse quando fosse adquirir as outras duas balas. Sentia-me vingado, mesmo sabendo que uma daquelas duas segundas balas, seria repassada para aquele meu amigo pelo seu serviço, mas não tinha problema, eu não queria era ser enganado por ele naquela sua matemática fajuta. Aí eu passava em frente a sua venda dando risadas provocadoras e fazendo para ele aquela mesma expressão patife e de espertalhão que ele havia feito para mim naquele dia. Ele era torcedor “doente” do Cruzeiro, embora fôssemos torcedores do mesmo time, eu fazia questão de só ir à sua venda vestido com uma camisa do Atlético, que por hora, eu trocava com um colega apenas para provocá-lo. Óbvio, realizado aquele plano eu destrocava aquela camisa rapidamente com medo de algum outro colega me ver com a camisa daquele time sofredor.

O fato de meu pai ser encarregado da prefeitura, efetuar o pagamento daqueles funcionários na minha casa e ainda por cima dar crédito na venda do Sr. Carlindo para aqueles que necessitassem, me dava certa moral numa comunidade ali de apelido Eucalipto, como também em minha rua que era um pouco abaixo daquela comunidade. A maioria desses trabalhadores moravam nessa comunidade, e alguns deles, uma minoria, moravam em minha rua. Sendo assim eu aproveitava essa falsa influência e prestígio que eram me dada por ser filho do encarregado de obras da prefeitura, e me tornava um dos raros menores de idade daquela região que podiam jogar sinuca por aqueles lugares sem ser incomodado pelo dono do bar. Exceto pelos policiais.

A venda onde tinha aquela sinuca era do Sr. ali daquela comunidade, ao contrário daquela do Sr. Carlindo, localizava bem mais próxima de minha casa, onde hoje foi apelidado de Pé do Morro do Eucalipto. E ele definitivamente não deixava menor jogar sinuca, excetuando-me. Quando questionado, dizia não querer problemas com o Major Aleixo, comandante da Polícia Militar de Inhapim.

Naquela época o encarregado reportava diretamente ao prefeito. Não existiam secretários disso e daquilo, seus subordinados, suas secretárias, seus veículos chapa branca, seus motoristas, enfim, não era esse cabide de empregos malucos que só foram criados posteriormente apenas com o único intuito de acomodar o maior número de correlegionários políticos possíveis com seus altos salários, de gente que não faz nada, e assim onerarem ainda mais os cofres públicos.

Naquela época esta comunidade era formada apenas por pessoas humildes, simples, muito honestas e trabalhadoras. Inexistiam vendas de drogas, cidadãos drogados, tanto ali no morro, como na cidade, e muito menos existia a figura do traficante. O que se via eram bêbados, como se vê ainda hoje. E só.

Minha cidade era circundada por matas virgens, sendo que atrás da minha casa, no alto aonde tinha aquela comunidade, havia uma plantação de eucaliptos que espalhava um tapete verde deles de uns 500 metros de frente, por uns 150 metros de largura, e essas metragens aí num morro um tanto íngreme. Ao contrário dos eucaliptos que vemos hoje plantados para uso em siderúrgicas, para matéria prima em empresas de celuloses, ou para outros fins, e de um tronco só, aqueles eucaliptos foram plantados sem nenhuma técnica, sem planejamento, muito próximos um do outro, sem manutenção alguma. Aquele tipo de eucalipto era formado pelo tronco e com diversos galhos, alcançando imensas alturas. Em seus pés cresciam um verdadeiro matagal formados por cipós e raízes, que muito das vezes elas se tornavam completamente intransponíveis. Não existiam estradas, exceto aquela para o cemitério, e ali caminhávamos por trilhos que ajudávamos a formar. Embora água ali só existia distante, algumas vezes via-se coelhos selvagens por aqueles lugares. Outras vezes achava-se ninhos cheios de ovos de galinha, o que fazíamos a festa vendendo-os no comércio, galinhas estas que era criadas soltas pelos seus donos.

Aqueles eucaliptos foram plantados para que a prefeitura os usasse na construção de pontes naqueles quase 1000 quilômetros quadrados daquele município.

Era ali que quando garoto eu passava os meus dias brincando, muito das vezes influenciados pelos filmes de faroeste da época como “Bonanza” e o Homem de Virgínia. Dentro daquele matagal todo se situava o cemitério da cidade. O detalhe especial era que de dia cruzávamos aquele cemitério pelos seus quatro cantos, muito das vezes pisando em covas, flores, velas e subindo em túmulos, e de noite eu morria de medo por ter estado lá de dia. Era meio que paradoxal aquele meu comportamento de, de dia ficar brincando naquele local, mesmo sozinho, e de noite ficar com medo da minha aventura do dia.

A verdade era que os próprios adultos faziam questão de nos amedrontar contando-nos histórias de pessoas que já morreram e casos de assombrações. Ninguém tinha mais medo no mundo que eu de pessoas que já tinham morrido. Mesmo quando morria alguém que eu não tinha nenhum contato, mas que eu tinha uma leve noção de sua fisionomia, à noite eu tinha medo que ele aparecesse para mim naquele meu quarto escuro, e ia então me proteger dormindo no quarto dos meus pais. Só assim eu conseguia dormir.

Naqueles dias, e quando lá estávamos bem antes do sol se por, vínhamos sempre embora. Além de estarmos longe, pois o cemitério ficava distante, em meio àquele matagal todo, ele não tinha iluminação pública e sua estrada de acesso era de terra, sofrível, e entre eucaliptos, além dela também não ter luz elétrica. Aquele local totalmente escuro nos causavam arrepios quando a noite se aproximava, ou quando chovia e aqui debaixo víamos o relâmpago iluminando aquelas sepulturas, e esta era a razão de calcularmos direitinho o momento certo de virmos embora. Lembro-me que muito das vezes, inocentemente brincando em minha rua à noite, onde de algum ponto dela avistava-se parte daquele cemitério, eu olhava para aquele alto em noites de lua cheia, via claramente figuras de túmulos e cruzes sendo refletidos, só aquilo pra mim já era o suficiente para tornar-me momentos de pânico, temor e assombro, quando eu ia dormir. E era mais uma noite que eu não dormiria sozinho em meu quarto, mesmo com a luz acesa.

Eu era frequentador assíduo da venda daquele senhor. Ela se localizava ao lado esquerdo onde funcionava a Sede da Banda de Música de Inhapim. Eu gostava de comer aquele salame acompanhado do refrigerante Grapette que invariavelmente era servido quente. O bar do Sr. Geraldo tinha uma geladeira. Era uma geladeira grande da cor bege e que ficava sobre um pallet de madeira. Ela não tinha mais suas juntas de vedação em sua porta, as quais, foram substituídas por outras feitas de câmara de ar de pneu de bicicleta. Eram coladas de maneira sofrível em todo o perímetro de sua porta, o que lhe conferia um péssimo aspecto. Era da marca ou de um modelo chamado Clímax. Suas portas não se fechavam, o que as faziam fecharem eram também duas câmaras de ar pneu de bicicleta que se amarravam uma a outra no meio da geladeira, e em suas duas extremidades tinham dois ganchos que se engatavam em sua frente, quando o Sr. Geraldo queria fechá-la, ou mesma abri-la. Nela havia certa hierarquia. As cervejas eram privilegiadas, pois ficavam dentro do congelador, embora este não tivesse mais tampa. Os refrigerantes eram contemplados com os espaços que sobravam, e que nunca sobravam dentro do congelador. Ele dizia “que menino não podia beber gelado mesmo”! Dentro da geladeira havia constantemente um prato esmaltado com alguns pedaços de carvão, o que eu nunca entendi a razão de sua existência naquele lugar. A luz que alimentava a cidade vinha de uma pequena usina elétrica que existia na redondeza da cidade, em um lugar chamado Cachoeirão, formado ainda pelo volume caudaloso das águas do rio que cortava a cidade, o Rio Caratinga. A luminosidade daquelas lâmpadas dos postes da rua e de dentro das casa eram sofríveis.

Hoje o custo/benefício daquela geladeira seria rigorosamente prejudicial àquele comerciante, mas com aquela geradora de energia não tinha problemas para o Sr. Geraldo, pois não havia relógios registradores nas casas e todos pagavam o mesmo valor, isso quando pagavam. Mesmo assim luz elétrica era privilégio somente de quem morava na rua, e em bairros próximos ao centro da cidade. Sempre que o Sr. Geraldo abria aquela geladeira ele se acidentava com aqueles ganchos, excomungava-a dizendo-lhe que a luz da CEMIG estava chegando e que ele "iria se livrar daquela coisa imprestável"

Via naquela geladeira do Sr. Geraldo um certo paradoxo, pois geladeira era um eletrodoméstico raro e recente na cidade, e o Sr. Geraldo já tinha uma muito velha. Isso me fazia pensar que aquela poderia ter sido a primeira geladeira que chegou àquela região, e depois de muito velha, foi presenteada àquele comerciante. Alguém um dia chegou com a história lá naquele buteco que ela havia sido trocada por um burro. Um burro velho, já que naquela época o maior meio de transporte em Inhapim, ou seja, as mercadorias que os produtores rurais colhiam em sua roças, eles eram trazidos para a rua em tropas de burros. E não eram poucas aquelas tropas de burros que se viam passar em minha rua, por ela ter pouco movimento, onde o burro "mais inteligente" guiava a tropa, pois tinha um sino amarrado em algum lugar de seu cabresto que o fazia tocar o tempo todo. Naquela época os bois, vacas e seus bezerros, não raros, eles ainda eram transferidos de uma fazenda para a outra, passando com eles em pleno centro da cidade, o que muito das vezes via-se o um outro animal daquele correndo pela cidade desobedecendo as ordens daqueles vaqueiros. E eram momentos de perigo para a população e casas comerciais. Caminhões eram raros na cidade, principalmente para esse uso.

Ali eu comprava balas ou eu as trocava por ovos que muito das vezes chegavam às mãos do Sr. Geraldo ainda gelados, pois eu achava mais fácil apanhá-los direto na geladeira de minha casa, que arriscar bater de frente com uma galinha brava e choca em seu ninho. Quando enjoava de suas balas, os ovos serviam como moeda de troca por fichas de sinuca. Não eram raras as vezes que eu tinha que sair correndo daquela venda para casa, pois ouvia a sirene do jipe da policia que proibia menores de ficarem em bar jogando sinuca. Diziam que o Dr. Estevão, que era o delegado da cidade há tempos, estava vindo.

NESTE DIA que eu estava jogando sinuca fazia alguns meses que o temido Dr. Estevão havia morrido. Só que para muitos ele continuava vivendo. Eu não conseguir entender aquela situação quando diziam que ele morreu, mas continuava vivendo, ou o que ele fazia era ressuscitar? Aquelas conversas só me traziam terror. Muito medo. E corria um boato pela cidade que ele aparecia de vez em quando para algumas pessoas, e que muitas destas pessoas o viram.

Uma vez a cidade teve o clube esvaziado repentinamente por seus usuários durante uma "Festa Dançante", pois disseram que ele estava dançando depois de morto com uma mulher naquele recinto. Eu até arrepiava com aquelas histórias, embora eu não tivesse idade suficiente para frequentar o clube da cidade, e muito menos, tivesse presenciado tal esvaziamento daquele lugar, mesmo eu estando do lado de fora do clube. Este caso de o clube esvaziar por completo se deu num dia 02 de Novembro, justamente no dia de finados, que era um dia que quando vivo, ele não deixava que o clube da cidade abrisse para os seus frequentadores. Dizia que deveriam guardar aquele dia, principalmente em respeito à sua mãe que estava sepultada naquela cidade. Não sei dizer hoje se era verdade que ele impunha essa ordem usando como justificativa sua mãe, mas que ele nunca deixava o clube, mesmo ele sendo particular, abrir em dia de finados, isso era verdade. Coisas de Inhapim! O delegado da cidade era indicação do prefeito.

Suas histórias de aparecimento para este ou aquele na cidade me deixava apavorado. Tinha medo que ele por algum momento aparecesse para mim pelo simples fato de que eu gostava de rodar naquele cemitério brincando em volta de seu túmulo, posto que, o dele era um daqueles túmulos que mais chamavam a atenção lá. De dia eu via a sua foto numa moldura em cima de sua lápide, de noite aquela imagem não saia da minha cabeça. Mas me mantinha dormindo em meu quarto sozinho. Não poderia nunca deixar que amigos e colegas de escola soubessem que eu a noite transferia o meu colchão para o quarto de meus pais. Se assim fizesse, e eles soubessem, com certeza eu teria que desaparecer da cidade e ficar escondido pelo resto da minha vida de vergonha. Afinal de contas, eu já era cheio de namoradinhas, me sentia um pouco “velhinho” para dormir no quarto dos meus pais, e já fazia o que se chamava de 1ª Série Ginasial.

Além do mais, uma descoberta de que eu dormia à noite junto aos meus pais com medo dos mortos, jamais poderia chegar ao conhecimento da minha maior paixão naquele tempo, que era a Catarina, a minha bela e apaixonante professora de Moral e Cívica, que vinha religiosamente todos os dias de Caratinga, sua terra, para nos dar aulas, e principalmente para alimentar ainda mais aquele meu amor pueril. Ela foi sem sombra de dúvidas o maior amor platônico que tive em minha vida. Clara, esguia, olhos verdes e de um sorriso encantador. Me fazia lembrar a Gigliolla Cinquete do filme que eu havia apaixonado por ela, Dio Come Te Amo.

Não nego, mesmo assim que, nesses dias eu dormia com a luz do meu quarto aceso, pois era no escuro que eu tinha medo de ter o Dr. Estevão me procurando para acerto de contas me fazendo companhia ali em minha cama. Por longo período ficava olhando para o teto com insônia relembrando das minhas travessuras durante o dia naquele cemitério. Embora ele tivesse morrido nos últimos dez meses, um dia sua família a título de homenageá-lo fez uma celebração em seu túmulo comemorando seu aniversário de 60 anos.

Nesse dia nós garotos estávamos lá entrando e saindo daquele cemitério com os nossos revólveres de brinquedo à mão. Presenciamos e participamos de toda aquela homenagem, embora não tivéssemos sido convidados para tal, e assim que seus familiares foram embora, aproximamos ainda mais de perto para ver o que eles deixaram como lembranças naquele túmulo. Eram muitas coroas e flores, e um porta retrato onde ele estava sentado com uma bengala em sua mão esquerda e apoiada ao chão. Aquela não era uma foto, e sim uma pintura, o que demonstrava a grande competência daquele pintor, pois o mesmo conseguiu retratá-lo de uma forma muito autêntica.

Ao dormir, quando minha mãe se atrevia a apagar a luz para economizar energia, eu vociferava dizendo que eu tinha que dormir de luz acesa por causa dos pernilongos que tinham no quarto, embora eu dormisse sempre com o ventilador ligado em cima de mim, o que impediria que até o mais resistente dos pernilongos permanecesse no quarto. Via que meus pais entendiam aquele meu medo e deixavam com que eu passasse a noite com a luz acesa.

UM DIA, já tarde, próximo das onze horas da noite, eu estava jogando sinuca naquela venda. Os ovos que arrecadei na geladeira e no quintal da minha casa seriam o suficiente para eu jogar umas oito fichas de sinuca, como também para comer o que eu mais gostava ali, que eram aqueles salames que ficavam em sua vitrine, um balcão antigo, desgastado, de cor amarelada, que tinha em sua frente um grande vidro transparente. Aquele vidro tinha um trincado em seu sentido horizontal por toda sua extensão. Seus pés eram devidamente calçados com caco de telhas. Sobre ele aquela máquina manual de cortar salame, jornais e outros tipos de papéis apropriados para se fazer embrulhos. Aliás, tudo que se tinha de comer naquela venda, e que ficava desembrulhado, ficava junto àquele salame. Pães, brevidades, suspiros, pudins acompanhados de suas moscas, Maria Mole, um doce açucarado e de duas cores, e aquelas roscas que por sinal nem um animal com força brutal em suas mandíbulas conseguiam mordê-las. Em um canto tinham paçocas, pirulitos, e separadas em um cantinho, o encanto de todos nós garotos, que eram as Caixinhas de Sorte, e que invariavelmente só vinham anéis.

Hoje só de lembrar-me daquelas gorduras enormes que aqueles salames tinham meu estômago embrulha. Ele vendia qualquer quantidade a partir de 50 gramas, o que não era mais que uma estreita fatia. Esse era o montante ideal, e o que existia ali de tira gosto, quando os bêbados que frequentavam aquela venda bebiam suas cachaças, e depois saíam cuspindo chão à fora.

Tacada para cá, tacada para lá, giz na sua ponta pra não deixar espirrar, às vezes eu ganhava ou perdia uma partida de sinuca naquela noite. Ficava lá rodando em volta daquele bilhar de ouvido em pé, caso a sirene do jipe da patrulha policial fosse ouvida.

Como em todas as cidades do interior, Inhapim também tinha seus bêbados tradicionais e folclóricos, e todos com os seus devidos apelidos. Como tinham presença de espírito aqueles que os apelidavam, tais como: Pinto murcho, Lenha, Otávio Chiqueiro, Bago Roxo, Noturno, Crispim Mini Pinto, e por aí ia. Óbvio, e lógico, além daquele de nome curiosíssimo que tinha até direito a aposto, o famoso Mertrevele ò Merda. Havia ali na cidade pelo menos uns vinte bêbados conhecidíssimos que eram vistos em todos os cantos, e lógico, invariavelmente bêbados. Os viam em campo de futebol, na zona, na igreja, no clube, jogados ao chão e às vezes até na porta da cadeia. Nunca passavam da porta para dentro, pois a polícia além de conhecê-los, não perdia tempo em prendê-los. Muito das vezes eram pessoas de boa índole e de famílias muito conhecidas na cidade, mas que se entregaram por inteiro ao alcoolismo.

Naquela noite, e já se aproximava da meia noite, perdi naquela mesa de sinuca o que se chamava de Negra de Três, e quem a perdesse seria responsável por pagar aquelas três fichas. Assim que começamos a segunda série de três partidas, eis que na porta aparece um daqueles famosos bêbados. Assim que ele aproximou, o Sr. Geraldo já foi logo lhe dizendo:

- Daí pra fora! Você só fica “serrando”!

Ele apenas olhou para aquele comerciante e se encostou na porta daquele boteco, aliás, em uma delas, pois em vez de uma grande porta de aço que era comum em bares e vendas na cidade, e que abrangia toda sua entrada, naquela venda existia eram duas portas de madeiras, que se distanciavam em apenas um meto uma da outra. Tinham suas portas e aduelas de cor azul, totalmente desbotadas, e que soltavam sua tinta em forma de casca. Lá estava o “Metrevele ò Merda” encostado em uma daquelas aduelas das portas e proibido de entrar. Dali mesmo disse-me;

- Renato, e este meu nome saíra um tanto indecifrável de sua boca:

- Paga uma pinga para mim!

- Não Metrevele, eu não tenho dinheiro.

- Como que você não tem dinheiro se tem dinheiro pra jogar sinuca?

- Tô jogando fiado.

Respondia, embora em nenhum momento o olhasse.

- Paga a pinga, pois você é filho do Sô Chiquito encarregado da prefeitura! Você tem dinheiro sim!

- Não tenho Metrevele, e não fica me enchendo o saco seu “viado”. Tá vendo, você me fez errar a bola.

- Paga a pinga ai senão eu vou contar para o seu pai que você tá jogando sinuca.

Fiquei calado! Aquilo não deixava ser ameaçador.

Pensei comigo: Bem capaz! Arrisquei minha vida enfiando minha mão debaixo daquela galinha do pescoço pelado brava e choca para tirar um ovo, e vou usar o dinheiro para pagar pinga para o Metrevele? Bem capaz!

- Paga a pinga senão eu vou chamar o Dr. Estevão para você, e deu um sorriso maroto.

Falei-lhe então:

- Vai lá na casa do Dr. Estevão e fala com ele que eu mandei que ele lhe pague uma pinga.

- O Dr. Estevão tá no cemitério.

- Ué, então vai lá no cemitério e pergunte para ele se eu posso pagar uma pinga para você.

- Eu não!

- Então não me enche o saco! Deixe-me jogar em paz. Só pago a pinga se você for lá no cemitério e trouxer aquela coroa grande que está no túmulo dele aqui para mim.

- Você tá doido? Aquele homem tá aparecendo para todo mundo na rua. Vai que eu chego lá e ele tá acordado e sentado no seu túmulo tocando aquele seu “viulino”.

- Então Metrevele, nada de pinga.

A partir desse momento ele ficou calado. Perdi novamente as outras três partidas e vi que naquele dia eu só poderia jogar sinuca, e sem direito a comer o salame, pois o seu dinheiro seria usado no pagamento das fichas perdidas. Comprei então mais três fichas. Queria ganhar para tentar uma negra e recuperar o dinheiro perdido.

- E se eu for lá e trouxer a coroa, você paga a pinga para mim, perguntou-me aquele bêbado.

- Pago!

- Paga mesmo?

- Pago!

E completei:

- E pare de me “encher o saco”, Metrevele!

Ele continuou ainda por algum tempo ali em pé resmungando. Lógico que eu não iria prestar atenção em seus resmungos, pois eu já tinha perdido seis partidas naquele momento. Aliás, mesmo que eu tivesse ganhado, eu não iria prestar atenção naquele "bebum".

Continuei então jogando. Nem me dei conta de que o Metrevele tinha saído dali. Ninguém deu conta, melhor dizendo. Eu tinha que ganhar aquela série de seis partidas para provocar uma super Negra de Treze. Ganhei! Ganhei novamente outra série de três partidas e agora era a “negrona" de treze, como dizíamos.

Ganhei novamente e fiquei sentado curtindo os louros daquela vitória todo feliz. Meu adversário foi embora. Disse para o Sô Geraldo que iria em casa apanhar o dinheiro para pagar aquelas fichas. Eu ria daquele seu desespero, pois sabia que ele não tinha dinheiro, “confiara no taco”, e que passaria um grande aperto dali para frente, pois teria que ficar preso em casa por semanas até o Sr. Geraldo se esquecer daquelas treze fichas. Um pouco antes, aquele comerciante devolveu-me o dinheiro que eu tinha adiantado no início pela aquisição daquelas fichas perdidas e aguardava que o meu adversário o repusesse.

Eu estava sentado em uma cadeira dentro daquela venda de costas para a rua e com os dois pés sobre o piso da cadeira da frente. Era inverno, a cidade estava coberta de serração, e só se conseguia identificar as pessoas quando elas já estivessem bem próximas. O relógio da venda do Sr. Geraldo tinha acabado de bater meia noite. Acompanhado daquele meu Grapette, eu saboreava aquele salame gorduroso e quente. Quente por ter passado a tarde toda naquela vitrine pegando o sol que ali dentro o castigava.

De repente senti algo sendo dependurado em meu pescoço. Este objeto era frio e um pouco pesado, pois me parecia ser de arame. Olhei para aquilo e vi que me era familiar. Aquele objeto me foi pendurado da forma com que meu pescoço lhe serviu como um suporte para segura-lo, e o resto estendia até minhas pernas.

Procuro formas ou palavras para expressar o susto, o terror, o assombramento que me acometeu naquele exato momento ao perceber que, o que estava em meu pescoço dependurado era aquela coroa que eu havia visto por três dias seguidos em cima do túmulo do Dr. Estevão lá no cemitério. Qual palavra ou expressão tenebrosa, pavorosa, diabólica eu procuraria no dicionário para expressar aquele momento de terror? Quando vi que era a tal coroa, levantei-me desesperado, alvoraçado e um tanto quanto trêmulo da cadeira que estava sentado e arremessei-a violentamente tao chão. Mais horrorizado ainda eu fiquei quando ao mesmo tempo em que joguei aquela coroa para longe de mim, o Metrevele, aquele “merda” de bêbado imprevisível e inconsequente, esfregava aquela moldura com a foto do Dr. Estevão em meu peito dizendo-me:

- Toma o retrato dele pra você!

Minhas pernas tremiam como uma palmeira exposta a um tornado. Não conseguia ficar de pé. Minhas mãos tremiam, minhas pernas tremiam, minha boca tremia, aliás, tudo em mim tremia de medo. Não tinha forças para abrir a boca. Não tinha saliva, suava frio e sentia como que se meus pés estivessem plantados ao chão. Não conseguia pronunciar uma só palavra. E aquela coroa agora ali jogada ao chão e tendo aquele porta-retratos sendo empurrado contra o meu peito ouvindo o Metrevele dizer-me que: - “agora você tem que pagar a minha pinga”!

Mas o que era pior ainda estava por vir, algo inacreditável, atemorizador e arrepiante. Foi quando aquele bêbado se abaixou e com toda sua falta de jeito e cuidado retirou de dentro de uma sacola algo o que parecia ser uma manga completa de um paletó da cor preta onde até se via perto de seu punho três botões pregados em fileira, e algo envolto nela. E tudo aquilo sujo de terra molhada. Deveria ser parte do paletó com que aquele defunto fora sepultado, e ali dentro deveria estar parte de um braço seu.

Como que numa fuga de uma presa caçada por um predador sai correndo de dentro daquela venda. A boca ressecada e o terror exalavam por todo meu corpo. Quando mais eu corria, mais minhas pernas ficavam mais pesadas, mas eu as sentia pregadas ao chão. Corri aqueles duzentos metros que me separavam de casa em menos vinte segundos, tempo de recordista olímpico, mas que me parecia que a distância era de uma volta em torno da terra, tal a demora em se chegar em casa. Corri, corri feito um louco, corri feito um cavalo alado. Corri à velocidade de uma gaivota quando mergulha no ar e vai de encontro aquele peixe no oceano.

Entrei em casa e fui correndo em direção àquele sofá onde meu pai se assentava. Ele se assustou com o meu desespero. Eu não tinha forças para falar, tamanho era o terror que me atormentava naquele momento. Com muita dificuldade consegui lhe balbuciar algo sobre o acorrido. Assim que lhe narrei àquele tenebroso e assustador episódio ele olhou para o lado daquela comunidade que nos avizinhava e gritou lá de baixo pelo Zé Raimundo, um amigo e funcionário da prefeitura, que não demorou nem um minuto, e meu pai lhe disse:

- Vamos ali comigo!

E para mim ele disse:

- Vai pro seu quarto já! E saiu.

E quem disse que eu teria coragem de ir para o tal quarto que ele havia me ordenado? Jamais, nunca, nem por todo dinheiro do mundo. Ir para o quarto e ter lá comigo o Dr. Estevão querendo saber o porquê de eu mandar pegar a sua coroa, seu porta-retratos e seu braço enrolado em uma manga de paletó no cemitério? Ir para o quarto sabendo que o finado Dr. Estevão estaria lá furioso deitado em minha cama querendo acertar as contas comigo? Nunca!

Quando meu pai voltou, já me encontrou dormindo. Dormindo provavelmente um sono profundo, e lógico ao lado de minha mãe, e em sua cama, e eu sabendo que dali a pouco eu teria a companhia também dele. E não estava ali nenhuma criancinha. Eu já tinha pelos no corpo.

No outro dia cedinho aceitei de bom grado os insistentes e antes sempre recusados convites de minha mãe para que eu viajasse com ela para Belo Horizonte pra ficarmos em companhia de suas sexagenárias irmãs, a quem minha mãe insistentemente as chamava de “meninas”.

Naquela capital fiz a gentileza, e por exigência de minha mãe, de dormir em sua cama todos aqueles dias de férias. E segundo nosso acordo, seria o que ela justificaria para suas irmãs.

No outro dia ao ocorrido, quase de madrugada, e a caminho da rodoviária de Caratinga onde pegaríamos o ônibus da Pássaro Verde para Belo Horizonte, fiquei sabendo que meu pai foi àquele boteco juntamente com o amigo Zé Raimundo, e levou de volta a coroa e o porta retratos do Dr. Estevão para seu túmulo.

No final das férias, pois minha mãe estava esperando com que elas terminassem, voltei para Inhapim. Isso depois de passar um mês dormindo ao seu lado. Dizem que chegando àquele boteco naquele dia meu pai pagou a pinga do Metrevele.

Quanto ao braço do Dr. Estevão? Não. Não foi devolvido ao cemitério. Onde o "Metrevele ò Merda" arrumou parte daquele paletó, ninguém sabia, mas o que ele tinha ali enrolado era um grande osso descarnado, um osso comprido localizado na canela do boi, e que ele apanhou em um bota-fora qualquer de um açougue que ele viu pelo caminho, e quis tornar ainda mais real ainda aquela cena.

Renato Sturzenecker
Enviado por Renato Sturzenecker em 28/05/2016
Reeditado em 09/08/2023
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