São Nicolas
Era a minha segunda viagem à Paris. Para fugir do típico roteiro das excursões, escolhi caminhar às margens do Sena em direção das bancas de livros usados na Quai Saint-Michel. Os livreiros são conhecidos como buquinistas, e conforme um amigo meu, eles comercializam verdadeiras raridades. Logo, encontrei uma banca que comprovou isso. Havia uma diversidade de artigos, muitos testemunhos da história daquele país. Transportei-me a diferentes momentos. A sucessão de lutas pelo poder, a destruição, a substituição de ideologias, a reconstrução após as guerras. No meio disso tudo, a beleza, a arte. Era um mural que me deixou perplexo e que me despertou interesse por alguns livretos, gravuras e fotografias. Apesar desses, havia um mapa velho de 1575 que teimava em me ressaltar aos olhos. O papel desbotado, manchado e com uma marcação em forma de círculo, parecia indicar um lugar. Consultei a Internet, era onde se situava a igreja Saint-Nicolas du Chardonnet. Investiguei ainda o mapa e percebi algo escrito no verso. O vendedor ajudou-me com parte do texto em latim. “Por certo, era de alguém temente a Deus”, disse ele, e apontou para as últimas frases: “Da fome, da peste, da guerra, livra-nos, Senhor.” Tive a impressão de estar diante de uma mensagem numa garrafa, que percorrera um oceano de revoluções e acabara de chegar até mim. Para justificar aquela compra a mim mesmo, pensei que, de qualquer forma, era uma recordação autêntica de Paris. Paguei pelo mapa, porém como muitos clientes solicitavam a atenção do livreiro, não pude solicitar mais seus serviços de tradução. Num café próximo dali, o Le Petit Pont, aconcheguei-me numa cadeira e passei a decifrar o texto com o apoio de um programa de tradução de meu smartphone.
Pelo que consegui desvendar, era uma mensagem de Jean-Louis Rémond, a um amigo, não informado no texto. Talvez o nome do amigo estivesse numa carta que continha esse mapa. O texto era curto, mas consegui perceber que havia diferenças entre os dois amigos, porém o autor o solicitava a presença na referida igreja. Dizia estar diante de um milagre. Pelo que entendi, algo a respeito da água jorrar a partir de um osso de Saint-Nicolas. E o texto terminava com uma prece e aquele pedido por proteção. Fiquei entusiasmado, talvez fosse mesmo uma relíquia. Quem sabe, o que haveria lá, naquela igreja. Será que após quase 5 séculos, ainda existiriam vestígios do que fora relatado? Como dispunha de tempo e a igreja ficava próxima, percorri a Quai de Montebello, Quai de la Tournelle, tendo o Sena ao meu lado esquerdo, de companhia. Virei à direita na rua dos Bernadins, uma rua muito estreita com construções antigas e altas, lado a lado. Senti-me sufocado, talvez fosse vítima do suspense por uma explicação. Talvez, fosse o que sentissem aqueles, perseguidos nessa via, durante as reformas religiosas. Homens a lutar por Deus, não muito diferente de hoje, é claro. Portas e janelas fechadas, ninguém desejava interferir nesses assuntos. Talvez, Rémond tivesse feito esse caminho, a fugir até a igreja. A rua ficou mais larga e pude ver, ao longe, meu destino.
Eram quase oito horas da noite. Quando entrei na igreja, o tempo estava apenas nublado, meia hora depois uma chuva intensa surgiu. Enquanto aguardava por uma trégua dos céus, meditava na solidão daquele templo. A maioria dos frequentadores já tinham fugido pouco depois de começar a chuva. Como ainda procurava algum sinal de uma relíquia pertencente a Saint-Nicolas, perdi o momento de sair sem ser encharcado. As pessoas da igreja cuidavam da água que ameaçava invadir por várias goteiras. Enquanto, ouvia o ruído da forte chuva a ecoar igreja adentro, observava as imagens, os quadros e a arquitetura clássica, lustres candelabros, cadeiras de madeira ao invés de bancos longos, um púlpito com escada e o confessionário à esquerda, de quem vem de fora. Nesse confessionário, percebi água a escorrer pela madeira. Olhei ao redor, não encontrei a quem informar. A igreja estava quase a fechar. Quando tentei mudar de posição, ouvi uma voz. A cortina do confessionário estava entreaberta, havia ninguém. Porém, fui surpreendido pelo reflexo de um homem, na água que ocupava o chão, além da cortina.
“Bonsoir! Eu espero que o senhor esteja bem. Por favor, desculpe minha aparição. Queria ter notícias de minha querida cidade. Como estão todos? Vivem em paz?”
O que falar para um fantasma? Pareceu-me um monge. Seria o autor da mensagem no mapa?
“Bonsoir! O senhor se chama Jean-Louis Rémond?”
“Sim! Recebeu minha mensagem?”
“Pensei que fosse para um amigo, de sua época.”
“Sim e não! Depois que presenciei mais um milagre de Saint-Nicolas, pensei em conhecer outros amigos, de outros tempos.”
“Mas o senhor é um fantasma?”
“Não! A água do osso de Saint-Nicolas me permitiu falar com o futuro. Mas, desculpe minha desatenção. Ainda não perguntei o seu nome.”
Repentinamente, percebi a porta da igreja a fechar e um pároco a se aproximar, correndo. Não ouvi mais quaisquer palavras de Rémond, porém fiquei assustado ao ver um rastro de sangue a pintar lentamente a poça no chão.
“Senhor! Acabam de acontecer alguns atos terroristas em Paris. Onde o senhor pretende ir?” A chuva havia terminado, mas a violência continuava a mesma.
“Da fome, da peste, da guerra, livra-nos, Senhor.” Respondi.