ENSINAMENTOS DA LOUCURA

ENSINAMENTOS DA LOUCURA

por E. Alyson Ribeiro

Um casal de loucos, por ironia do destino ou instinto animal, teve uma filha; e talvez sem saber o porquê deram-lhe o nome de Cleópatra. Apesar disso, a criança foi bem cuidada por sua mãe débil, não se sabe como, mas todos os dias aquele pequeno ser era alimentado corretamente por sua progenitora. Os outros loucos que ali viviam ficaram espantados com o que viam, alguns pegavam troncos de árvores e personificava uma criança e delas se tornavam pais, outros fingiam ser um bebê. O local onde essa comunidade de loucos vivia era a floresta, próximo às fazendas de soja no norte do país.

Mesmo assim, aquela criança cresceu e por sua inocência se divertia com os demais loucos, afinal, para ela todos eram os seus amigos de infância. Os loucos de forma misteriosa a tratavam como rainha, como deusa. De fato, aquela pequena Cleópatra gostava do modo como era reverenciada. A verdade, para eles, a menina era o ser mais rígido e forte daquele local e tinham nela a esperança de proteção.

O pastor Marcos Miranda em um dos seus trabalhos missionários conheceu aquele povo e sempre levava comida aos loucos. E enquanto distribuía o alimento, também lia a Bíblia e falava sobre Jesus Cristo; apesar disso, nunca tentou tirar ninguém dali, pois sabia que eles se sentiam felizes naquele lugar. A menina, contudo, nunca revelou ao Pastor que era normal, sempre fingia, pois ainda tinha medo de ser separada de seus pais. Cleópatra possuía os seus 16 anos quando Miranda apareceu.

Mesmo não tendo contado com o mundo, o pecado de Adão e Eva a fez ter consciência para tapar o seu belo e curvilíneo corpo moreno. Um vestido longo que ganhara de presente do reverendo Miranda era usado por ela como proteção, antes, porém, usava cascas de frutas ou folhas para tampar suas partes íntimas. Sendo assim, seus cabelos eram negros e lisos, porém pela falta da vaidade os possuíam desarrumados. Seu cheiro era natural do mato, contudo, quando se banhava no rio era possível sentir o frescor da água nascente. A rainha dos loucos achava normal o mundo de seus pais, ali a imaginação era mais importante do que a sabedoria. Não era necessário haver nenhuma universidade ou livros ali, notar-se-ia a presença de pessoas que se autodenominavam pilotos de avião, médico, advogado, Napoleão Bonaparte, Pedro Álvares Cabral, Emílio Garrastazu Médici, Joana D’Arc e, de modo curioso, o nome do homem que descobriu as primeiras jazidas de ouro em Minas Gerais no ano de 1693, Antônio Rodrigues Arzão.

Um dia aquele local foi atacado por pessoas que se afirmavam normais. Os intrusos habitavam ali ao lado, na fazenda de Moacyr Abba, um homem com 60 anos de idade, pele clara e descendência judaica, de estatura alta e proprietário da maior produção de soja daquela região. Vários homens e mulheres com seus intelectos apurados e visão de mundo baseada no lucro queriam derrubar as árvores dali e usar o terreno como pastagem de animais. Os loucos, ao se verem em perigo devido ao ataque, ficaram medrosos, correram e se esconderam no meio da floresta. Apenas o débil Napoleão e a jovem Cleópatra ficaram esperando pelos invasores. O fazendeiro, que liderava o ataque montado sobre o seu cavalo da raça Quarto de Milha cuja pelagem era marrom, vendo que restaram duas pessoas ali, pediu aos seus subordinados que voltassem e o deixasse sozinho com eles. A jovem mulher, portanto, quando viu que Moacyr se aproximava, logo tentou dialogar:

- Bom dia!

- Como você sabe se é dia ou não? Sua loucura não lhe permite isso! - replicou em tom provocador, Moacyr.

- Quem disse que sou louca? Quem lhe falou que aqui só existem pessoas com defeito cerebral?

O fazendeiro ficou confuso, pois uma pessoa louca não iniciaria um diálogo e o indagaria daquela maneira, por isso, perguntou:

- Quem é você e qual o motivo de estar aqui? Para quem você trabalha? Quem lhe enviou aqui?

- Sou Cleópatra...

Moacyr a interrompeu e começou a rir, afirmou que se ela era Cleópatra ele seria Júlio César e olhando para a mulher disse:

- Vocês são loucos! Saiam da minha frente!

- Posso ter esse nome engraçado, mas sei que não sou a Cleópatra. Minha mãe foi quem me intitulou com esse nome, você pode não acreditar, mas nasci aqui. Sei que sou diferente deles, contudo, não posso abandoná-los.

O fazendeiro teve outro espanto “Como?!” pensava incessantemente. Ficou com desejo de levar aquela jovem dali de lhe dar a oportunidade que ali ela nunca teria. Ele sabia que seria difícil, mas tentou:

- Cleópatra posso lhe presentear com as oportunidades do mundo, você pode estudar, casar-se e formar a sua família longe daqui. Veja! – Abba desceu do seu cavalo e se aproximou da jovem, pegou os jornais que estavam em sua mochila e, na tentativa de mostrar as maravilhas do mundo sem notar qual era a matéria que estava na capa disse - Repare a primeira página...

- Por que aquele homem está chorando? – perguntou Cleópatra quando viu a imagem de um homem sobre o caixão do filho que fora morto por seu tio, irmão do próprio pai.

- Bem... Sabe como é né?! O mundo lá fora também tem as suas iniquidades. Nesta foto o homem chora pela morte do seu filho. - E percebendo o espanto da jovem tentou mudar o foco - Mas aqui...

- Por que a criança morreu? - a líder dos loucos o interrompeu.

- O tio da criança a matou, devido ela ter quebrado o som do carro dele. Ela morreu por tanto apanhar.

- Nossa! – Cleópatra se espantou e em seus olhos surgiram as lágrimas.

- Calma não é para tanto! Não precisa chorar!- disse Moacyr tentando apaziguar a situação.

- Como você consegue ficar tranquilo sabendo que uma criança acabou de morrer? - perguntou a moça de modo desesperado.

- Isso ocorre todos os dias! É normal!- disse o fazendeiro de forma natural.

- Normal é morrer, saber da morte é crueldade! - afirmou a jovem.

- Então o mundo ficará pior mais um pouquinho- afirmou Abba de forma bem humorada quando previa qual seria a notícia da página seguinte.

- Quem são esses homens vestidos iguais e com o rosto peludo, claro que alguns menos, outros mais?- indagou a filha dos loucos.

- São os administradores do país. Eles deveriam zelar por nós e procuram a melhor forma de nos conduzir ao bem estar maior.

- Que bom que existem pessoas assim no mundo!

- Contudo, essa imagem mostra pessoas que desviaram o dinheiro público o qual fora destinado à construção de creches, escolas, quadras esportivas, enfim, locais para as crianças brincarem e estudarem. Por isso, temos lugares em nosso país que as mulheres não têm onde deixar o filho e, por isso... As ruas cuidam deles. Em alguns casos, tornando-os bandidos e responsáveis por várias mortes. – Desculpe-me por mais uma notícia trágica, vou virar a página.

A imagem que apareceu foi o efeito da explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, a matéria do Jornal apresentava um especial dos 68 anos em que a bomba fora lançada. A jovem ficou atônita com a foto, achou linda, ficou encantada com as nuvens em forma de círculo e o caminho de fogo ao centro dele. De fato, era imagem mais linda que os seus olhos presenciara e após degustar cada detalhe daquela obra de arte suspirou:

- Que coisa mais linda! - e olhando para Moacyr continuou - Essa imagem... Como?! O que é isso? Na verdade, como se chama? Seria a aparição de Deus a Moisés? - Cleópatra sabia sobre a história de Moisés devido um dia ter prestado atenção em uma das leituras do reverendo Marcos Miranda.

Moacyr, contudo, mudou o seu semblante, ficou triste e meio sem jeito com as palavras, queria mentir, mas sua consciência não permitia, não encontrou formas diretas de dizer a verdade e, por isso, começou a falar aquilo lhe vinha à mente:

- O mundo estava doente! O expansionismo territorial virou obrigação à Alemanha de Hitler, à Itália de Mussolini e ao Japão do imperador Hiroíto. Ninguém respeitava a Liga das Nações, órgão criado com a finalidade de conter conflitos. Uma grande crise econômica emergiu naquele período devido aos efeitos causados em guerras anteriores. Em 1931 o Japão invadiu a Manchúria pertencente à China. A Itália, desse modo, ocupou a Etiópia em 1935 e em 1939 a Albânia. Na Espanha ocorreu a Guerra Civil Espanhola. Governos ditatoriais surgem. - Moacyr fez uma pausa e olhou para o céu, em seguida segurou nas mãos de Cleópatra e prosseguiu ao vê-la atenta às suas descrições - Hitler tomou várias medidas que iam contra ao Tratado de Versalhes. Talvez você não saiba, mas Tratado é um acordo entre países. Sendo assim, o Führer, modo como os alemães o chamavam, em 1939 invadiu a Tchecoslováquia e nesse mesmo ano assinou o Pacto Germânico-Soviético de “não agressão” com a URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E agora eu chego onde eu queria ter chegado, em 01 de setembro de 1939, os alemães invadem a Polônia. O estopim da guerra, pois Inglaterra e França declararam guerra à Alemanha.

- Meu Deus quanta guerra! Que mundo é esse em que você vive? - perguntou apavorada a jovem mulher.

- Você ainda não terminou de ouvir tudo. Uma atitude mudou o rumo de tudo. Vou lhe poupar tanta história, entretanto saiba que um dia o Japão atacou a base estadunidense de Pearl Harbor em 1941, isso promoveu a entrada dos Estados Unidos da América, EUA, na guerra. – E dando um sorriso melancólico Moacyr prosseguiu- Ironia ou não mesmo com a derrota da Alemanha e a morte de Hitler, os EUA no dia 6 de agosto de 1945 jogaram uma bomba nuclear nas cidades de Hiroshima e no dia 9 de agosto do mesmo ano em Nagasaki, ambas japonesas. – O fazendeiro olhou para Cleópatra e com um sentimento agudo disse ao pegar o jornal e lhe apontar a foto - Isso aqui é imagem da explosão da bomba que matou mais de 140 mil pessoas e, ainda, causou várias doenças devido o efeito da radiação liberada.

A jovem não se conteve e começou a chorar como nunca, afinal, nunca ouvira tantas histórias sobre a morte em um dia. O louco Napoleão, que estava ao seu lado a todo tempo, correu amedrontado para dentro da floresta. Moacyr preferiu manter o silêncio, afinal ele estava transtornado, parecia ter tomado um choque emocional, uma epifania. A líder dos loucos tomou o jornal do fazendeiro e se sentou. Ficou olhando por vários minutos a imagem que parecia vir do céu, contudo, que teve maldade expressada do mesmo modo que o inferno. Cleópatra sempre sonhou em sair dali, queria conhecer os lugares em que o reverendo Miranda lera na Bíblia. Contudo, sua pupila retraiu, ficou com raiva e olhou para Moacyr e disse:

- Por que você veio aqui?

O fazendeiro se assustou com a pergunta, mas como não conseguia mentir àquela jovem respondeu de forma calma e pausada:

- Vim, primeiramente, para assustá-los e se caso tivessem alguma reação, chamaria o meu pessoal para... - fez uma pausa e ao perceber o que ele estava prestes a fazer, caiu em si e automaticamente as suas mãos começaram a tremer, seus olhos deram boas-vindas às lágrimas, seu coração palpitava de forma extrema.

A musa da loucura sentiu a sua cólera se acalmar, logo, levantou-se rapidamente e foi acudir Abba. De fato, ela sabia o que ele tinha em mente, mas preferiu ser anônima ao conhecimento.

- Por favor! – disse o fazendeiro à moça com um tom melancólico, porém desesperado - Desculpe-me... – pediu enquanto colocava as suas mãos sobre o rosto delicado de Cleópatra - Estava querendo invadir as suas terras e tomá-las de vocês e...

A jovem o interrompeu perguntando:

- Você queria fazer o mesmo que esse tal Hitler fez? Do mesmo modo como esse Japão filho de não sei quem aí o qual possuía como objetivo invadir as terras da... Mulher chamada Chin... Ou sei lá como se diz... Talvez, China? Você queria nos fazer sofrer?

Moacyr ficou ainda mais triste com essas perguntas. Pois, mesmo Cleópatra não sabendo ao certo qual eram os países que estiveram em conflito na Segunda Grande Guerra Mundial, sua descrição foi profunda, pois os povos chineses, assim como todos os cidadãos que foram obrigados a lutar pelo seu país sofreram humilhações, mortes, estupros. E quando a rainha da loucura apresentou a China como mulher o fez sofrer ainda mais, pois o homem possuía uma filha com traços faciais semelhantes aos chineses. Não se sabe o motivo, mas ele a viu como um milagre, como uma sobrevivente da guerra. Suas lágrimas aumentaram e seu choro era ouvido à longa distância. Aos poucos os loucos que correram para dentro daquela floresta começaram a sair.

O fazendeiro precisou se sentar, contudo, sentiu que alguém o abraçava e ao olhar viu o débil Napoleão, em seguida os mais de quarenta membros daquela comunidade envolveram Abba num caloroso abraço coletivo. Tal atitude o deixou sem nenhuma reação, naqueles instantes ele se sentiu amado, a verdade, pensou estar no céu. Dessa forma, conseguiu visualizar Cleópatra e em seus olhos ele percebeu o sabor da piedade. O fazendeiro se dirigiu até a jovem e com a voz rouca de tanto chorar disse:

- Confesso que eu teria uma péssima atitude e que queria roubar as suas terras e fazê-las minhas. E os expulsaria daqui e os deixaria sem lugar para ficar. Entretanto, hoje percebi que não é você quem habita num mundo recheado de loucuras, mas sim, eu. Você é um milagre tanto quanto qualquer um que aqui está. Vocês vivem e eu, contudo, existo. Cada dia aqui é único, cada pessoa tem um mundo diferente e faz dele o seu paraíso - Moacyr fez uma pausa, deu uma risada irônica e prosseguiu - Mas no mundo em que eu sou apenas um ser existente, as pessoas sofrem, cada um quer ser mais rico do que o outro. Crianças pedem comida, empresários pedem petróleo. Sabe Cleópatra, muitos achariam graça desse jovem Napoleão – e apontou para o louco - Mas eu o admiro, pois de suas mãos nunca saíram uma só gota de sangue. Assim também admiro aquele presidente Médici – e apenas moveu os seus olhos na direção do débil - Pois nunca precisou torturar ninguém para poder governar o seu país.

A jovem estava atenta às palavras do fazendeiro, apesar de nunca ter conhecido as verdadeiras personalidades dos donos dos nomes que Moacyr dizia, ficava ainda mais contente com os membros da sua comunidade, pois via neles a inocência descrita. Para ela os verdadeiros donos dos nomes habitavam ali, junto dela. Seu pensamento foi interrompido quando o fazendeiro perguntou:

- Quero lhe fazer um pedido, posso?

- Claro! - respondeu a jovem mulher.

- Quero ser louco como vocês, pois hoje eu percebi que a maior loucura está em se achar normal. Por isso, quero vir morar aqui. Quero ser membro desse grupo de loucos e não continuar fazendo parte dos males da loucura humana. Você me aceita no grupo. Posso vir morar aqui, ou melhor, querem morar em minha casa. Lá vocês terão comida, roupa lavada e...

Cleópatra o interrompeu novamente e disse:

- Nós somos felizes aqui. Cada um possui na floresta parte do seu mundo. Comemos o que a natureza nos manda ou o que o pastor Miranda nos traz. Tirar-nos daqui é nos colocar nesse mundo em que você me mostrou. Por acaso, você não disse que está farto desse mundo tão desigual em que vive? – E estendendo a mão ao fazendeiro continuou - Aceito você aqui, mas não irei contigo. Quer ter a paz, o sossego, a tranquilidade que segundo você nós temos? Então venha viver como vivemos e saia dos seus valores, deixe sua casa, sua roupa lavada e venha!

Moacyr titubeou, apesar da experiência que viveu ali, não desejava abandonar os seus valores, sua fazenda, sua riqueza. Mesmo sentindo a melhor sensação do mundo, mesmo se sentindo amado, apesar de ter percebido que o mundo está doente, o fazendeiro preferiu voltar para sua existência humana. Era difícil para ele perder seus bens, o amor ao dinheiro era grande. Desse modo, selou o seu cavalo se despediu de todos que ali habitavam e prometeu que compraria aquelas terras para que ninguém pudesse perturbá-los, disse ainda que sempre que tivesse tempo, isto é, quando não fosse trabalhar voltaria para passar bons momentos e sentir a paz que ele sentiu. Contudo, nunca mais voltou do mundo dos normais.

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Conto retirado do Livre "A Visão do Cego" disponível para download em E-LIVROS.

E Alyson Ribeiro
Enviado por E Alyson Ribeiro em 13/05/2016
Código do texto: T5634679
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