História de um povo qualquer !

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Não havia monarquia, não era no tempo do rei, foi muito depois ou bastante antes de qualquer majestade e aconteceu assim...

“ Senhores, senhores... Um pouco mais de silêncio, por favor !” - pedia o nobre representante-chefe da comunidade num apelo conta-gotas a seus pares de ouvidos tão negligentes quanto ávidas línguas, quando então se ouviu um alto “calem-se” ! Berrado com determinação e experiência de ponto final de parágrafo - calaram-se - não aqui nessa vírgula, lá antes, como se nunca tivessem falado um dia, obedientes ao comando conhecido.

Com a paz assim imposta, o representante-chefe, um pouco fatigado pelo calor, sentiu-se na obrigação de iniciar o assunto no seu estilo cordial:

- Caríssimos, tem havido reclamações demasiadas em nossa próspera comunidade sobre como algumas autoridades legítimas teriam dirigido mal os assuntos mais importantes para todos nós.

Um duvidoso bom começo ao combinar “próspera comunidade” e “autoridades legítimas”, visto que essas eram as principais contrariedades de quase todos: muita autoridade, pouca prosperidade e quase nenhuma legitimidade.

Urge esclarecer que essa unida comunidade vivia em isolamento geográfico e cultural quase absoluto há centenas de anos, surgiu do agrupamento espontâneo de interesses comuns nas terras férteis, da força de trabalho e com o tempo, do equilíbrio que se davam e aos seus semelhantes.

Entretanto, como convém a qualquer reunião humana ascendente, sempre haverá de existir alguns ou vários que necessitam avançar (em suas concepções) para um caminho ou um modo de vida que apresente mais resultados e, estimulados por esses, a comunidade aqui descrita, a qual vinha muito bem, sem maiores problemas, resolveu instituir um conselho-mor responsável pela melhor condução do querido povo tropical - Decidiram também que os conselheiros seriam eleitos dentre candidatos livres e que aos mesmos seria garantido uma pequena renda em contrapartida por sua generosidade e dedicação.

No início (bem no início, é importante frisar), o ajuste pareceu positivo, pequenas causas eram resolvidas mais rapidamente, alguns ritos básicos foram acertados, criou-se certa segurança, todos estavam contentes.

Porém... Ah ! Esse pernicioso elemento: o porém... Algo na visão dos nobres conselheiros transmutou-se – Acaso não eram os representantes eleitos de toda aquela região ? – Não teriam em suas mãos uma responsabilidade enorme de fazer o bem final ?

“Sim”, responderam-se orgulhosamente e iniciaram maquinar todo tipo de regras - primeiro instituíram uma força-vigilante no objetivo precípuo de garantir o cumprimento das demais normas; A ninguém pareceu estranho existir, antes ainda de qualquer mandamento, um grupo que zelasse pela obediência a esses futuros procedimentos, um claro indício da natureza pouco cordata destes.

Já assegurados em sua ordem, passaram ao reexame da sociedade: - Nada escapou da diligência dos senhores conselheiros: ruas, casas, moda, casamentos, cumprimentos, religião... os menores detalhes foram reduzidos a termo. As pessoas riam, algumas não se importavam e os eleitos do povo perceberam, como seria natural, que sua atividade exigia um esforço quase hercúleo, portanto, resolveram aumentar substancialmente a gratificação que recebiam da comunidade, bem como ampliar seus mandatos; – mandatos ? – Não bastava pedir para que saíssem ? – um tanto vago isso, mas era assim, até que os fixaram em lei, cada vez maiores, sempre repetidos nomes ou amigos próximos destes - eleitos democraticamente, diziam.

Um certo dia, tais homens abnegados concluíram ser mais que evidente a necessidade de um incremento fixo além dos seus salários... uma contribuição financeira compulsória, nada dessa história de “não posso pagar” e assim ficou instituído o resgate de bens em prol da sociedade: o sujeito é nada perante o todo, fizeram acreditar.

Inexplicavelmente, apesar de não existirem melhoras visíveis, os tais resgates eram, de tempos em tempos, alargados, assim como a força-vigilante e seus soldos, também foram inaugurados uma sede e prédios públicos com inúmeros contratados e junto toda uma infinidade de artifícios para dificultar a comunicação com os representantes do povo, os quais não se pareciam mais com o povo representado.

Bem e desse modo chegamos ao discurso do representante-chefe após algumas manifestações nada amigáveis de alguns membros infelizes. Vamos ouvi-lo:

- Essas insatisfações não procedem meus amigos, labutamos tanto para que sejamos sempre mais ricos ( o que não deixa de ser verdade,

muitos concluíram) e com mais justiça para todos, realmente, é lamentável que se sintam tão prejudicados por nosso trabalho quando tudo que queremos é o bem maior social, ainda que isso desagrade a alguns mais egoístas, talvez mais ambiciosos, menos dispostos a compartilhar seus espaços ( um zumbido se formou nessa fala, possivelmente daqueles que já não tinham espaço algum para compartilhar).

- Façamos assim – continuou o digno líder – alguns de nossos projetos não serão levados adiante esse ano, uma pena realmente, mas se é isto que vocês querem, o que o nosso amado povo quer, é isso que faremos.

- “ Quem falou em projetos ?”, “ não é nada disso “, “ Queremos acabar com esse sistema”, “não queremos pagar mais”, “fora com todos vocês”... muitos pensaram calados, preocupados até mesmo se não teria sido alto demais.

Nesse momento e sem mais, como se ouvissem as emanações cerebrais do amado povo, a força-vigilante desfez a reunião, distribuindo igualitariamente tapas e pontapés para que o governo seguisse sua justa escalada - Como é difícil extinguir o que se permitiu viver por tempo demais, disse um daqueles pensamentos fugidios e graças a Deus, anônimo !

A um canto da sala, discretamente mudo, um ancião de longas barbas anotava o ocorrido, tinha a esperança de mudar o futuro contando os fatos como de fato ocorreram, até porque havia sido recém inaugurado um novo órgão oficial (mais um), espécie de comissariado do passado e da verdade, com o objetivo de narrar a história daquele povo e isso sim era um grande perigo para a verdade, todos sabem disso.

Infelizmente, não se tem notícia do ancião ou dos seus escritos após essa reunião pacífica, também não há notícias daquela sociedade, ela não teria como sobreviver mesmo, há um ponto-limite para o desmando, depois dele, extinção.

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