A Cabana

O homem estava só. Rodeava-se de apetrechos de pintura e desenho e de quadros pelas paredes, alguns destes completamente desgastados pela ação do tempo. Tudo em seu pequeno aposento denotava a marca do abandono e da solidão. É possível avaliar o sofrimento de alguém ao analisar a situação em que ele se encontra. Mas, jamais conseguir-se-á penetrar na alma de um rejeitado, que passa seus dias tentando encontrar uma razão de viver. Ele tinha que se arrastar de sua velha poltrona para o outro canto do cômodo quando os pingos da chuva conseguiam atravessar os furos do zinco que era o telhado de sua humilde cabana. Mas, quando era forte a tempestade, suas mãos trêmulas da esclerose múltipla que o vinha definhando não agiam a tempo e ele era pego pelas goteiras. Os cabelos brancos, caídos na testa deixavam escorrer o liquido face abaixo, marcando a camisa.

A limitação causada pela deficiência pode deter ou não a marcha da vida. Isto depende do acometido muito mais do que das circunstâncias em que ele se encontra. No fundo de uma floresta, no meio de nada que possa ser definido como civilização ou de um irmão da espécie humana, se alguém sobre vive é porque há, no âmago dessa criatura algo além da força física que se anula distante do obstáculo.

O estralejar de chuva sobre as telhas de zinco era ensurdecedor, mas não para os nervos anestesiados daquele artista, isto já não importava. As telas. Estas que, ao longo da vida lhe deram entusiasmo e alegria jamais seriam atingidas se ele pudesse impedir. Quando conseguia se desvencilhar de uma parte do telhado cuja falta de cobertura poderia trazer o prejuízo da perda, principalmente se era chuva de vento, era grande a sua frustração. A pilha de telas sobre a mesa de centro estragava-se toda e ele tinha que interromper suas atividades até que a vinda do sol as tornasse secas no todo, ou em parte.

Mas, quanta beleza emanava de suas obras! Quando não produzia perdia-se na contemplação daquilo que havia criado. A obra prima, segundo os que a avaliaram na época em que fora produzida se mantinha ali, intacta, em seu tamanho natural como a vigiá-lo e protege-lo em cada uma de suas ações. Recostada a um dos cantos do cômodo, presas por grossas tiras de pano, entre as grades de duas janelas, não se movia pela ação do vento mais forte e longe estava de qualquer ameaça de chuva. As janelas viviam fechadas em razão de sua segurança, o que tornava escuro o ambiente, banhado unicamente pela fraca iluminação de uma claraboia improvisada.

Na imensidão da selva, como um minúsculo ponto, quase invisível, a cabana resistia às ações inclementes do tempo. As chuvas torrenciais já tanto a maltrataram que não se podia assegurar seu tempo de sobrevida. Mas, a musa inspiradora, a emanação de sua aura indecifrável, na tela gigante, cujas ofertas milionárias ele rejeitara um dia, ali permanecia, sorria para ele, noite e dia. Dias e noites incontáveis após a separação. Se o não tivesse abandonado a história seria outra. Agora o sentimento de culpa o corroía e a doença, também. Preferira a separação da mulher que amava a se desfazer da obra que venerou e ainda venera muito mais a cada dia.

- Você não ama esta obra. Quer dela se desfazer a troco de uma quantia que se acabará um dia - dizia ele à mulher e modelo de sua criação.

- Mas, é a sua chance, meu amor! Veja, no meio de tantos quadros este agradou em cheio. Está chovendo de ofertas e você não o quer vender!

Ele era assim. Não vendia os seus trabalhos, não se importava com isso. Vivia cercado por eles, adorando-os, enlevado por sua vocação artística inaproveitável. Há anos não via um ser humano. Isolava-se porque, assim, não seria tentado. Nos tempos em que se sentia forte plantou e pescou para a sua manutenção. Agora suas saídas são raras. O alimento escasseou e o físico mal consegue se locomover para as mínimas necessidades. Por todos os lados, quadros inacabados; telas inúteis a uma repentina inspiração. Pinceis jogados, endurecidos, a inação dominou-o de vez. Ele olha em volta, vislumbra a porta entreaberta que permite à réstia de sol, de uma manhã bela e refrescante, bafejar-lhe a face pálida e insone. Suas forças o abandonaram. Tudo que condiz com um ateliê de pintura não passa agora de um antro de recordações. Algumas vezes por dia um vento menos brando, projetado pela mudança brusca da temperatura insinua-se por sobre a vegetação, invade o recinto do velho através da porta entreaberta, jogando ao chão o cavalete, junto com a última tela recém iniciada, cujos esboços são linhas incertas, frutos de nenhuma inspiração.

Próximo dali a floresta arde em chamas. A fim de tornar a área propícia ao pastoreio do gado, precisa consumi-la o fogo, ateado pelo interesse do ganho que não mede consequências. O fogo se alastra, lambe sem dó o que encontra no caminho. A fumaça, o calor insuportável invadem o recinto onde, deitado, mais morto que vivo, o artista dá-se conta do perigo que se aproxima. Ali, prostrado há dias, incapaz de um movimento, está à beira da morte quando o fogo começa a consumir a cabana. Percebe que sua obra maior vai ser destruída. “Isto não pode acontecer” ele pensa e, ato contínuo, ergue-se de um só movimento, agarra-se à enorme tela, já desatando-a de suas amarras. No instante seguinte já se encontra a metros dali, a salvo e em seu poder o trabalho de sua vida. Por mais que se esforce para entender, o pensamento comum, baseado na lógica, não encontra explicações para fatos dessa natureza.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 14/04/2016
Reeditado em 14/04/2016
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