Voo Para a Liberdade

Na fazenda, de onde narro o que me aconteceu não existem a poluição, a corrida e nem o estresse das grandes cidades. É por isso que, de um tempo para cá, tenho passado mais tempo aqui do que lá. Tenho tido todo tempo do mundo e da vida que Deus me deu para aproveitar da maneira que convenha ao meu espirito saturado pelos quase quarenta anos de dedicação incansável à empresa que, finalmente, me aposentou. Mas, como inatividade mata muito mais do que qualquer coisa, procurei fugir disso através de uma ocupação simplesmente inusitada, mas muito útil a todos nós. Parece estranho vir para uma fazenda procurar ocupação quando é justamente esse o lugar ideal para não se fazer nada. Mas, estirar-se na rede, olhando as estrelas é tudo que eu menos quero e quase não faço. Os pássaros não me permitem esse privilégio. Vou explicar.

Desde que aqui me instalei, há pouco mais de dois anos, tenho conquistado a simpatia de alguns vizinhos, mas o ódio e, por que não dizer, a inveja da maioria. E tudo pelo simples fato de eu não aceitar que maltratem as pequenas aves. A liberdade é um dom divino e trazer passarinhos engaiolados para a pura diversão e ganância financeira eu considero crime, embora não se costuma prender quem tem por passatempo manter pássaros entre grades de arame ou mesmo dentro do que chamam de viveiro que, para mim, não passa de uma prisão com mais espaço. Passo os dias visitando fazendas e sítios aqui da região e ganhei, como já disse, inimigos, já tendo sofrido ameaças. Alguns lojistas não escondem sua insatisfação comigo e estou certo de que partem deles as ameaças que pairam contra mim; como não desisto fácil dos meus objetivos, vou em frente.

Nos primeiros meses da minha briga por essa causa mais do que justa enfrentei uma situação deveras periclitante. Eu estava numa festa dada por um dos fazendeiros do lugar, conhecido e admirado por sua enorme e invejável coleção de pássaros. Ele se gabava do “tesouro” que possuía. Não se cansava de o elogiar e adorava colher opiniões dos visitantes sobre seus doze viveiros, cada um habitado por pássaros conhecidos e muitos importados das mais diversas regiões do planeta. Ele não me conhecia; recebeu-me, apresentado por um de seus convidados. Quero dizer que, até aquele dia, nunca me havia passado pela cabeça criar um movimento em defesa de pássaros e aves sacrificados pelo homem a ponto de fundar uma ONG que hoje é referência mundial no assunto.

Pois bem, nós conversávamos animadamente sobre a criação de pássaros e eu percebia, à medida que ele se expressava, e por seu entusiasmo, como era grande seu interesse nessa atividade e, segundo ele, vinha ganhando muito dinheiro com isto. Eu já não achava nada interessante perder tempo em troca troca de passarinhos, comparar o canto de um com o de outro e disputar qual o mais bonito e ganhar dinheiro com isso. Cobrir a gaiola, tornando ainda mais entristecido o cativeiro do inocente ser para que, sem saída, ele expresse sua amargura por meio de cantoria que se torna, assim, um apelo chamativo à liberdade é tão cruel quanto ineficiente, pois só contribui para encurtar a vida do pequenino ser. Usufruímos muito mais de sua capacidade e destreza largando-o nos braços da natureza, porque livre e feliz ele não se poupará em nos deleitar de canto e de cores.

- O senhor acha mesmo compensador manter esses bichinhos presos em cativeiros. Que vantagem podemos obter com isso? - Percebi que ele não recebera com satisfação essa minha demonstração de discórdia da minha parte.

- Porque? O senhor acaso tem algo contra à criação de pássaros?

- Na verdade não sou muito favorável. Acho uma judiação o que fazem com os indefesos.

- Se observar bem, verá que meus viveiros não são como a maioria, sujos e miseráveis de comida, eu os trato bem. Eu mesmo faço questão de cuidar pessoalmente de todos os detalhes.

- Sim, acredito. Isto dá ao senhor mais chances de ganhar dinheiro: pássaros bem cuidados cantam melhor e valem mais. Mas esquece de que está cometendo um ato de crueldade com esses seres? Eles foram criados para viverem soltos na natureza e nos alegrarem de lá. Já vivi em lugares onde as aves e pássaros são realmente felizes e vinham comer em nossas mãos sem medo de serem aprisionados; não falo dessa felicidade egoísta a que o senhor se refere. Mas da felicidade real e natural, essa que o senhor está vivendo agora. Acaso gostaria de ser prisioneiro em sua própria fazenda, gostaria de viver confinado em uma gaiola para o resto da vida?

Nesse ponto, sem conseguir esconder sua ira por minhas fortes palavras, ele me contestou, utilizando para isso uma mentira muito fácil de ser descoberta.

- Pois, fique sabendo o senhor que meus pássaros são treinados a ir aonde quiserem e voltar para o seu lar a qualquer momento, nunca os privei da liberdade. Tenho constatado isto sempre que abro meus viveres e os deixo partir.

Aproveitei esse momento para desmascará-lo de vez diante de todos os convidados que ouviam atentamente nossa discussão, alguns já apreensivos.

- Já que é assim, não se importará se eu abrir todas as portas dos seus viveiros e der aos nossos amiguinhos uma chance para mais um dia de passeio. Como é certo que voltarão não há problemas; não é mesmo?

Vi a preocupação em sua fisionomia. Eu sabia que, fazendo isso estaria libertando definitivamente quase todos os pássaros, pois só uma ou outra espécie age da forma que ele falou. Mas como não queria ficar mal diante dos outros, concordou plenamente que eu assim fizesse; parece não ter acreditado que eu realmente o faria. Ato contínuo, sem dar tempo a que ele mudasse de ideia, saí abrindo, uma a uma todas as portinholas dos seus doze viveiros. A debandada se fez sem esperar e o céu se encheu de bandos de aves que, num piscar de olhos, desapareceram no horizonte.

A reunião prosseguia. Bebíamos e conversávamos como se nada se houvesse passado e ele dando a certeza, aos que criticaram minha ação, de que seus companheiros, como ele os chamava sabiam o caminho de casa e que, por certo, voltariam. Mas só uns poucos retornaram, como eu já sabia e tive a confirmação nos dias que se seguiram.

Eu, que pensei ter ganhado, com aquele episódio, um ferrenho inimigo, por incrível que possa parecer, isto não aconteceu. Fui muitas vezes à fazenda desse homem e, depois de muito conversarmos, e de ele ouvir e respeitar os meus pontos de vista e eu os dele, acabamos por nos tornar amigos. Falei da ONG que tencionava criar e tive dele o apoio que muito me ajudou. Contou-me que sua vida mudara à partir daquele acontecimento e que seu coração tornara-se mais leve e feliz.

Continuo com minha luta em busca do objetivo e muito grato a Deus pela forma com que utilizo meu tempo, contribuindo para manter nossa natureza sempre bela e colorida.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 09/04/2016
Reeditado em 28/11/2021
Código do texto: T5599879
Classificação de conteúdo: seguro