Conto de uma noite fantástica
Deitei-me como de costume por volta das onze. A mesma rotina. De início decúbito lateral esquerdo; um travesseiro baixo por sob a cabeça, outro entre os joelhos e um terceiro servindo de apoio lombar. A consciência aos poucos se desvanecendo em devaneios oníricos. Ocasionalmente um resgate à vigília, em contraponto às angústias de Morfeu. Um pouco mais tarde, após o desvio ao decúbito lateral direito sobreviria inapelavelmente o sono profundo...
Mas aquela noite foi diferente. Ouvi um sussurro. Levantei-me de prontidão e, abrindo a janela, deparei-me com a visão instigante. Por cima das folhas da hera, trepadeira nativa a parasitar o muro lateral, e por entre as gotas da chuva incessante, percebi a face impassível. Olhos, nariz e boca humanos, mas a cabeleira definitivamente alienígena, furta-cor, emanando descargas elétricas acentuadas pela chuva que farfalhava. O tom de pele fugidio e esverdeado.
Eis que então a criatura saltou de seu pequeno galho e num só rompante acocorou-se no parapeito da janela, fazendo-me recuar, estupefato. Disse-me então em voz ronronante: VIM PARA QUE VOCÊ TENHA VIDA.
Refeito do susto, convidei-a para um café na mesa da copa. Ao sentarmos notei que não tinha pés, mas apenas uma bruma espessa a lhe sustentar o tronco. Dei de ombros, sorvi o primeiro gole e fui direto: o que significava aquela intromissão? Quem lhe havia dito que eu precisava de alguma outra vida? Achava ela por acaso que eu não estivesse satisfeito com a minha própria? Vinha por iniciativa própria ou a mando de terceiros? E qual o motivo...
Num gesto definitivo a criatura de aspecto medusoide levou seu dedo aos meus lábios e calou-me. Repetiu sibilantemente: VIM PARA QUE VOCÊ TENHA VIDA.
De súbito tomou-me pela mão e saímos a flutuar pela janela da copa. Num instante estávamos por sobre o telhado. Divisei toda a minha rua, o meu bairro, a minha cidade, a minha região, o meu estado, o meu país, a América Latina, o planeta.
Pensei comigo: como sempre estive em todos esses lugares e nunca me dei conta?
À medida que subíamos mais e mais, percebi a insignificância da minha existência mundana. A minha pequenez.
E constatei então que apenas sobrevivia, feito um mísero inseto míope.
Pela manhã estava diferente, fortalecido. Não entendia bem a razão daquilo tudo. Mas me senti melhor do que de costume.
Oxalá pudesse permanecer assim.