Para você que é amigo...
Mal começara a década de sessenta, e já mudava de mãos a Papelaria Santa Terezinha, praticamente a única especializada em material escolar da Velha Serrana. Foram-se as irmãs Brandão, com aquele seu jeito beato um tanto sisudo, e levaram consigo a imagem da Santa que dava o toque da graça naquela casa comercial. Não que essa graça se estendesse necessariamente aos preços do material que ali se vendia. Que era pouco, simples, mas que no geral, àquela freguesia paroquial bem atendia.
É que lhes tinha falecido - ainda provavelmente distante dos setenta, e assim, prematuramente - a genitora, deixando aquelas moças desarvoradas e desconsoladas. E também o comércio não havera de andar bem, dando aquela trabalheira toda e com margens cada vez menores diante do avanço da inflação, impulsionada pela gastança da ilha da fantasia - que hoje tanta gente da bulhocracia repudia.
Os funcionários públicos da cidade tinham certo prestígio, ostentação, mas os salários atrasavam e quando chegavam era em outras prioridades e outros atrasados que se concentravam. Já da massa operária, que ao menos tinha em dia os seus ordenados menos se podia esperar - e muito menos fiar para o ganho realizar - pois seus filhos estudavam em estabelecimentos da periferia, mal passando do primário, e o minimus minimorum era o que se adquiria.
E como eram todas professoras, foram as irmãs se dedicar integralmente às atividades didáticas, além das religiosas que já eram sua saudável prática. Uma delas pelo menos, além dos olhos verdes, tinha uma voz que de dar urticária numa Callas. Mas a voz era para louvar o Senhor e seu vigário, e ponto. À rapaziada restava o prazer de lhe ouvir os trinados - sonhando de olhos acordados.
Mas e a papelaria? Fora passada para uma família tradicional local, capitaneada por um senhor de aspecto quase imperial, com seus bigodes e cavanhaque, e com os filhos com toda disposição para a vida comercial. Mudou-se também a razão social: agora era A Escolar. Santa Terezinha que nos perdoe, mas a garotada pelo menos via mais vibração e conformidade naquele novo título: A Escolar.
E foi lá entrando, não sem certa inibição para comprar algum material, que pude experimentar a nova situação em toda sua sedução. Mal balbuciei o que queria já me vieram os olhos vivazes da atendente ornados por expressivas sobrancelhas negras com a resposta que me desarmou - e me fez pagar antes de pegar: "...para você que é amigo, são trinta cruzeiros".
Senti um arrebatamento sem igual ser chamado de amigo por uma lindeza com tamanha delicadeza. Mas não mais cruzei com aqueles olhos, e tampouco lá retornei para reivindicari o valor da nova amizade. Andava duro. Literalmente.