Errança da Neném

Eram todos "filhos da Neném" naquela família. Mas só Lia o apodo

trazia. Lia da Neném, e seus irmãos Vicente, Ção, Tôca e Vica. Nenhum

se casara, e crescidos juntos, juntos ficaram. Com exceção de Vica que, embora ausente de corpo, mantinha a alma presa àquela irmandade.

Melhor dito, às irmandades, pois eram tanto os consanguíneos terrenos

quanto os divinos e serenos, pois Vica se mandara para o convento,

compelida pelo ardente desejo de ser irmã de caridade. E só a metade

do intento fora cumprida: ficara Vica no convento mas não acedera

à "santidade" das freiras. Ou lhe faltavam "luzes" ou sobravam trevas

na superiora madre, de sorte que só como servente fora Vica acolhida.

E ainda assim, se sentia feliz da vida.

Quanto à Lia, muito lia, e mais falava do que podia. Em matéria

vocalização com sua cadela branca bonita e peluda, a Léia, é que

competia. E era aquela algaravia. Lia trabalhara se muito uns poucos

anos na fábrica de tecidos. Logo caíra naquela enfermidade que a

prendia à cama e vivia da pensão do Instituto. Eram remédios e

remédios, mas sem remédio para a saúde de Lia. Seus braços finos,

alvos viviam marcados de picadas de injeção. Enquanto nenhum médico

descobria, ou lhe revelava qual a enfermidade que a prostrava, Lia na

cama é que se debruçava e se à janela ia, não mais que espiava. E

também, nas vagas horas, muito rezava. Era o que sustentava.

Vicente era quase não gente, de tão diferente. Talvez nunca tivera um

emprego, um trabalho e sua vida se resumia a sair de casa pela manhã,

munido da inseparável vara de boiadeiro, com aguilhão na ponta e ao

longo de todo dia, rua que descesse ou subia, bois imaginários é que

tangia. Chegava às vezes a babar, as crianças tinham-lhe medo de a

espinha esfriar, mas era manso com as pessoas, nunca agredira, e nem

mesmo respondia às caçoadas. Só era bravo com a boiada. E conversa,

nem fiada.

Tôca era a mais miúda, uma doçura de pessoa mas que vivia se

escondendo a toa. E numa boa. Fortemente estrábica, dos poucos

dentes que lhe restavam um crescera em demasia e beleza física não

era a que mais aprazia. Prematuramente enrugada chegava a causar

pânico na meninada, mas era mesmo açucarada. Cuidava da cozinha,

da limpeza da casa e tudo fazia parecendo até que sorria. Quando à

igrejinha ia, o que todo dia fazia, punha-se de joelhos e beijava o piso

da entrada ao altar, na humildade mais que exemplar.

E como lhe aprazia agradar, servindo café e bolos em sua casa - sempre seguindo o que mana Ção ou mana Lia lhe dizia.

Ção era a que mantinha o vínculo com a fábrica, o trabalho fora de

casa, e dentro também. Comunicativa, era a lembrança viva e

antecipada do semblante do Menem, o argentino presidente das suíças

salientes. Y de otras cosas más calientes.

Lia era uma espécie de centro nervoso daquela casa, tudo em torno

dela girava. As visitas a ela se faziam. Com o passar dos anos, os

cabelos lhe esbranquiçaram de tal forma que sua figura parecia já ter-

se desencarnado do corpo. Mas cheias de espírito eram a mente e a

conversação, quando a cadela Léia não fazia intervenção. Dependente

de tanta formulação química ao longo de anos, a presença de Lia se

manifestava quase que só na voz. E naquele pressentimento atroz, que

parecia tê-la perseguido desde a chegada ao Brumado, com os pais, no

carro de boi, vindos da Onça à procura do emprego na "fapa": os pais

deviam ser parentes próximos e a herança dos filhos não parecia ir

longe, enquanto não chegasse a eternidade.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 05/02/2016
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