PAGAMENTO*

Não conseguia se lembrar de quanto tempo estava esperando naquela fila. Não fossem suas memórias de uma vida inteira poderia dizer que era uma eternidade. Ela parecia ser planejada para provocar desconforto, nunca parava o suficiente para que se pudesse sentar, ninguém ajudava ninguém, vários adormeciam e eram passados para trás por centenas, sem o menor pudor. A cada seis horas passavam dois funcionários servindo um sanduíche de mortadela e um copo de Ki-suco de maracujá. Usavam uniformes vermelhos, o que ao seu ver era uma piada de extremo mau gosto!

Finalmente saiu do céu aberto e entrou no enorme edifício da repartição. Todo em estilo gótico, era espetacular e em seu tamanho e forma. Era clara a intenção do arquiteto de esmigalhar o espirito humano daqueles que precisavam resolver alguma coisa ali. Depois que se entrava na edificação a fila se reformava em caracol através do uso de gradis, formando uma enorme lombriga retorcida no imenso saguão da construção, que terminava em um imensa bancada de madeira com vários buracos. Em cada um deles um vidro separava um funcionário vestido de vermelho, com olhar de incomensurável enfastio, de seus requerentes. Todos eles pareciam sair mais perdidos do que chegaram, e assim que viravam as costas, ouvia-se o grito entediado:

-"Próximo!"

Quando chegou a sua vez, entregou pelo guichê sua pasta codificada, que havia sido lhe dada à ele na sua chegada. Para não ter aporrinhamento fingiu tentar descobrir o que estava escrito nela, pois esse era o passatempo favorito da fila, todos ficavam tentando decifrar o que aqueles símbolos impressos naquelas fichas de plástico, comparando o tamanho das pastas, e tudo o mais. A mulher quando começou a lê-la esboçou um pequeno sorriso. Era como ver nascer uma flor numa montanha de estrume:

-"Seja bem-vindo, colega! A sua porta é a PI-27D, a 48ª à esquerda.

Foi andando pelo extenso corredor. A cada porta formavam filas consideráveis, umas maiores do que as outras, mas todas impressionantes. A sua porta era uma das últimas do corredor.

Achou muito estranho que não havia fila nenhuma diante da sua porta. O funcionário que o atendeu estava dormindo na cadeira quando chegou. Ao acordar se levantou em um pulo e arrumou a camisa vermelha:

-"Um cliente, já faz um tempo. Sente-se futuro colega. Por favor, sua pasta."

Leu com atenção durante uns dois minutos, depois passou à apenas folhear as páginas. No final soltou uma gostosa gargalhada:

-"Pensar que sua esperança me custou 10 anos para minha promoção! Numa calçada, de infarto, a trinta metros de uma igreja católica e a vinte metros de uma evangélica! Não pode reclamar que não teve sua chance!"

-"Não, não posso. Tive meus vinte anos de fortuna e prazeres como vocês prometeram. Minha chance de não vir para cá também."

-"Não fique tão chateado, havia uma chance de 25% de você acabar indo para a diretoria. É o que torna o trabalho de campo tão interessante. As pessoas às vezes nos surpreendem! Como você fez comigo, mas seus colegas, não. Poderia ter sido dono de um talento único. Podia também estar bem evoluído no treinamento. O Kurt Cobain já está no trabalho de campo. Bem, agora começa o seu!"

Jogou uma apostila de mais de duas mil páginas e uma camisa vermelha no colo dele:

-"Daqui algumas horas começa a brincadeira. Familiarize-se primeiro com os contratos de morte aos 27 anos. Eu sugiro ler o da Janis Joplin. É um clássico!"

Foi saindo:

-"Ei, aonde você vai?"

-"Embora, você assinou um contrato, não é um simples condenado, é um empregado! Ou queria ser igual aos outros, sendo mandados de repartição em repartição pela eternidade! Segura essa pica aí que ela não é mais minha!"

Pois a olhar o letreiro em cima da sua mesa:

Divisão de Contratos Aquiles (sucesso com vida controversa e morte jovem). É, o inferno não são os outros, não é um poço de enxofre e lava fervente, não é aquele lugar tenebroso e escalonado que Dante imaginou. É só uma repartição pública...