A ASSEMBLÉIA*
Esse conto substitui Quintal.
Cansou de enrolar e de rolar de um lado do outro da cama. Decidiu se levantar:-"05:00hs, vá se catar! Pelo menos no sábado eu tinha que ter o direito de dormir!". Deu comida para os gatos nos fundos, fez café, pegou um cigarro, encheu uma vasilha de ração e foi para o quintal da frente. Seu labrador logo veio lhe saudar, nem dando bola para a comida. Trazia sua rodela de borracha na boca e queria brincar:-"Ah, meu amigo! Logo de manhã, eu ainda nem fumei!".
-"Está aberta oficialmente a sessão!" com voz solene bradou o subconsciente:-"O primeiro a expressar o desejo de se manifestar é o Espírito da Crítica Instruída, batizado de Heráclito, o Pedante!". Este se levantou e falou com sua voz empolada:-"Quero reiterar que devemos fazer uma moção à Diretoria para que se esforce para mudar o nome do cachorro. Marley para um labrador é se render a um popularismo do mais baixo nível. Inaceitável!". O espírito conciliador, conhecido como Zé, o Banana, após a fala do colega, disse:-"Mas para que arranjar problemas com tantos que a Chefia já têm! A esposa e os filhos gostaram do filme. Ela até leu o livro! Ele mesmo leu e gostou, apesar da pouca qualidade literária. E Heráclito, sejamos honestos, o cara ficou rico! Metade das pessoas que a gente lê aonde escrevemos é melhor que nós!" A Assembléia inteira assentiu, e Zé, como de costume, venceu mais uma.
O Espírito Científico, Galileu, o Chato, se levantou, como sempre para fazer uma consideração completamente fora do tema:-"Observem como Marley nos conquista ignorando a comida e querendo brincar. Isto é devido ao fato do cachorro ser um dos animais que se adaptaram ao homem e assim garantiram sua sobrevivência. Este é o grande erro dos vegetarianos. Existem bois e galinhas no mundo inteiro. Não há suínos no Irã!". Wilde, o Poeta, exclamou irritado:-"A ciência é o fim da poesia! Pensar no que você falou tira toda a graça de assistir um Rin-Tin-Tin ou ler sobre a morte da cadela Baleia. Seu xará não deveria ter sido calado, mas sim enforcado!".
-"Mas que merda, começaram logo cedo!". Parou de jogar a rodela para o cachorro, fechou a varanda, acendeu o cigarro e enquanto fumava ficou contemplando seu quintal. Uma pequena piscina, uma pitangueira pequena em flor, um pé de acerola carregado, outro de jabuticaba e outro de limão. Um cimentado aonde cabiam pelo menos seis carros. Quantas e quantas horas de trabalho não estavam enterradas ali!
O Espírito Cantor, Chatotorix, o Bardo, pulou de seu lugar e começou, a lá Cauby:-"Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor. A chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão!...". O subconsciente o cortou bruscamente:-"Colegas, colegas, ordem. Não incitemos novamente a má vontade da Autoridade!". Agostinho, o Teólogo, se levantou e também se expressou com veemência:-"É um erro não ajudarmos a enaltecer o sentimento que envolve o Ser! O que temos aqui é a gratidão pela vitória da fé. Durante anos ele resistiu aos apelos mesquinhos de sua companheira e acreditou no Senhor, que lhe concedeu a vitória em forma desta casa. E ele nunca se apegou ao dinheiro, sempre acreditando que Deus supriria suas necessidades!". O Espírito de Honra Masculino, João da Lapa, ergueu-se furioso:-"E ela reconhece isso! Ela lembra disso! Nãaaooooo! Nunca perde uma chance de humilhá-lo! Enquanto não nos unirmos e não lhe dermos força para que Ele se faça ouvir, será sempre um capacho!". Agostinho respondeu:-"É justamente este tipo de incitação ao rancor e a mágoa que faz com que sejamos tantas vezes emudecidos. Ele se cala mas ouçamos com que saudade e carinho se lembra das pessoas que cuidou!". Do portal da memória surge Hemengarda, a Bibliotecária:-"Com relação a isso quero citar, em apoio ao Teólogo, a frase que ele sempre pensava no seu trabalho: Que outros sentidos nos faltam para que percebamos o mundo ao nosso redor. Será essa a origem da misericórdia divina. A mesma compaixão que temos dos cegos, surdos, loucos e retardados?". A Assembléia em peso pede:-"Referência! Referência! Referência!". Ela revoltada lembra a moção de protesto da Memória quanto as reclamações. Nela diz que, afinal de contas, todos que estão ali são filhos dela e que a Autoridade judiou muito dela no decorrer dos anos. Os protestos cessam. Mas talvez a palavra judiar a tenha acordado. Levanta-se a encarnação da Mãe, a Terrível:-"Eu avisei para ele (como ela fala Dele sem respeito) para não se envolver com os vícios. Que era cedo para casar! Que tinha que juntar dinheiro e não sair gastando loucamente! Que serviço é só serviço! Mas ele escutou, esse ingrato? Agora esta aí, sofrendo e se lamentando. E não faz nada para mudar! Não vai para frente! Não têm iniciativa! É um preguiçoso!" A encarnação do seu Avô, o Bom Velhinho, intervem:-"Não pegue tão pesado com o menino. Ele tentou fazer o seu melhor". Voltando-se para o alto:-"Filho, cansa o cavalo, que a mente descansa". Esse ditado, vindo do candomblé, horrorizou Agostinho, mas ele concordou que Ora et Labora seria a melhor solução no momento depois da desastrosa fala da Terrível
Mas não houve tempo. De repente tropas negras invadem a Assembléia, todos são obrigados a se calar e a sessão é bruscamente encerrada.
-"Vai se lascar que eu vou ficar aguentando esse falatório na minha folga!". E tomou três comprimidos para dormir.