O OLHAR
Olhou para todo aquele dinheiro em cima da mesa e sorriu consigo mesmo. Estava sozinho em casa, sua mãe havia saído e a noiva só chegaria em algumas horas. Antes de espalhá-lo sobre a mesa, tivera o cuidado de verificar se havia alguém que o pudesse surpreender contemplando a pequena fortuna que recebera há pouco, num beco escuro da cidade. O sorriso transformou-se em gargalhada, ele podia fazer isso, ninguém o escutaria.
Começou a fazer planos: uma roupa nova para sua mãe, tão cudadosa para com ele e tão sem vaidade em se tratando dela própria. Desde que seu pai morrera, a coitada se sacrificara para lhe dar o melhor, fazendo coisas que ele não suportava vê-la fazer, tarefas domésticas para as "madames" da vizinhança. "Agora acabou" - pensou. Ela nunca mais se humilharia diante de ninguém, ele agora era um homem rico. Sua mãe, enfim, descansaria. Decidiu também que daria a festa de casamento que sua noiva tanto desejava. Se antes era um sonho impossível, agora parecia plenamente realizável.
Planos, planos, planos.... Havia tantos que nem sabia direito por onde começar. Uma casa nova. Não queria continuar morando ali. Ah, "eles" ficariam roxos de inveja quando o vissem subir de vida assim, tão repentinamente. Tinha tudo planejado: diria que um parente distante morreu, deixado uma pequena fortuna como herança. Mas a notícia não seria dada de uma vez: primeiro diria que o tal parente estava doente; depois sumiria por alguns dias, em "viagem", no final da qual daria , enfim, a grande notícia. Não havia como dar errado, desta vez nada podia segurá-lo, ele teria da vida tudo o que lhe fora negado até então.
Um único motivo o incomodava: o modo como conseguira o dinheiro. Não se culpava, mas sabia que não agira corretamente. Sim, ele traíra um amigo, mas e daí? Quantos já haviam feito isso antes dele?... Além do mais, se não fosse ele seria um outro qualquer. Mais cedo ou mais tarde isso teria de acontecer. Melhor então que fosse ele a usufruir do benefício.
Guardou o dinheiro em lugar seguro. Não era conveniente que sua mãe o encontrasse antes do tempo, não havia como explicar tudo o que fizera e ela certamente não entenderia. Por sorte aquela fortuna nem fazia tanto volume assim, de modo que saiu de casa tranquilo, tudo estava correndo conforme o planejado.
Procurou evitar os lugares onde sabia que encontraria os amigos. Por um tempo teria que fugir deles. Mas valeria o sacrifício. Caminhou despreocupado por entre as barracas da feira, a vida lhe sorria de modo diferente agora. Tudo parecia mais fácil, tudo parecia ter um outro sentido.
Mas o destino, esse destuidor de sonhos, é implacável com quem não compartilha da sua boa sorte. Acabou passando exatamente ao lado da escolta que conduzia um prisioneiro para o local em que seria sentenciado. E esse prisioneiro era o homem que ele havia delatado para as autoridades.
Seus olhos se encontraram por apenas alguns instantes. Ele o fitou de forma estranha, não havia raiva nem desprezo ali. Não soube dizer imediatamente o que significava aquele olhar, apenas tentou desviar-se, mas não conseguiu. Os olhos o prendiam, penetavam como facas, revolviam todo o seu interior e depois sorriam, sorriam e sorriam...
Queria saber o motivo daquele breve sorriso, mas quando se deu conta estava chorando. Tudo foi tão rápido, que logo a multidão que os acompanhava se perdeu na distância. Ele ficou parado, a chorar como uma criança, e compreendeu a profundidade do seu erro, o quão miserável era por ter feito o que fizera. O arrependimento chegou tarde demais, já não havia como voltar atrás. Só lhe restara o dinheiro, o maldito dinheiro...
Entendeu então o que havia naquele olhar que o incomodara tanto: era amor. Apesar de tudo o que fizera, aquele homem ainda o amava da mesma forma que antes. E isso o fez sentir-se pequenino, do tamanho de um inseto.
Andou a esmo pela cidade, tentando se esconder da lembrança daqueles olhos, pura ilusão. Por passava, só ouvia falar naquele homem, em como fora traído por um amigo. Por ele.
Chorou amargurado. Sabia o que tinha de fazer.
Judas fizera sua escolha. Restava agora encarar seu destino.