Lethal Loan Retriever

O homem de bermuda e sem camisa está sentado em uma poltrona assistindo a TV.

Seus dedos inquietos, lambuzados com uma mistura de substâncias que incluem gordura de pipoca, açúcar carbonatado de refrigerante, meleca de nariz e cera de ouvido recém coletada apertam os botões do controle remoto, procurando por aquele canal de TV mágico, ideal e utópico onde todos os programas são exatamente aquilo que ele mais deseja assistir naquele momento.

Exceto pela luz da televisão, a sala está escura.

Uma reportagem monótona mostra os últimos estragos causados pelas chuvas incessantes das últimas semanas na cidade. Parecem ser os mesmos estragos de sempre assim como parece ser a mesma chuva de sempre, que cai como nunca e não parece mais querer parar de cair. É até de se espantar que a noite esteja estrelada.

O interfone do apartamento toca, o zunido alto da campainha explodindo e assustando o homem, que pragueja.

A boca torta, dentes raivosos aparecendo, ele se levanta, joga o controle remoto na poltrona e deixa cair pelo assoalho meia dúzia de grãos de pipoca que repousavam nos arredores de seu umbigo.

- Oi - ele atende o interfone.

- Olá. Gostaria de falar com o senhor Michel Granville. Ele se encontra?

- Sou eu mesmo - diz o homem chamado Michel Granville, o tédio espalhado na face, a mão livre vasculhando seu traseiro e procurando o lugar mais adequado para coçar. - Do que se trata?

- Meu nome é Jonas e represento a empresa LLR, de restauração de posse...

- Não quero comprar nada - diz o homem suspirando, a barba crescendo, os programas de TV passando e ele sem um pingo de vontade de perder tempo com vendedores.

- Calma, senhor. Não vou lhe vender nada - chia a voz no interfone. - Na verdade, só estou aqui para lhe fazer algumas perguntas em nome de nosso cliente, Nilson Evimar Tissan, o senhor o conhece, não é mesmo?

O homem que segurava o interfone e coçava a bunda percebeu que aquele nome não era estranho. Um amigo das antigas, talvez.

- Acho que conheço, sim. O que você quer saber?

- Segundo nosso cliente Nilson Tissan, o senhor está de posse de algo que lhe pertence.

- Como é que é?

- Nosso cliente alega que há bastante tempo o senhor está de posse de um CD e três LPs que não lhe pertencem. Segundo as informações que recebemos de nosso cliente, o álbum Avalon do grupo Roxy Music, e dois outros discos com coleções de músicas, Hit Parade 86 e 90, além do compact disc Pavarotti e Amigos, ou Pavarotti and Friends, que ele lhe emprestou em...

- Cara, eu não tô entendendo nada do que você tá falando. Pavarotti? Roxy-o-quê?

- Roxy Music. É uma banda dos anos setenta, acho... Enfim. Nosso cliente alega ter lhe emprestado os referidos materiais lá pelos idos de 1998 ou 1999. Ele não foi muito preciso em relação à data...

- Como é que é? Cê tá dizendo que esse cara aí me emprestou uns discos?

- Isso mesmo. E a empresa que eu represento é especializada, digamos, em intermediar devoluções de coisas que foram emprestadas. Simplificando os termos legais, eu visito o cidadão que, sem justificativa, manteve um objeto que lhe foi confiado por um de nossos clientes sob a promessa prévia de devolução, confirmo esta posse e requisito em nome da LLR a devolução de tal objeto, que então terá posse restaurada ao seu legítimo dono que, como eu já disse, é nosso cliente.

O homem arregala os olhos, achando toda aquela conversa absurda.

- Você tá falando sério? Isso é uma pegadinha, né?

- Não, senhor. Somos uma empresa séria. Tenho toda a documentação aqui comigo, o contrato de serviço de restauração de posse, o certificado de autenticidade do emprést...

- Cara, vai se ferrar!

A voz no interfone emudece por alguns segundos.

- Não compreendi, senhor.

- Senhor o cacete! Vai fazer pegadinha lá na puta que te pariu, seu filho da puta!

- Senhor, reitero que não se trata...

- E EU REITERO A PUTA QUE TE PARIU! Seu merdinha, eu tô descendo aí pra baixo e tô levando meu 38, e se eu te encontrar aí, juro por Deus que vou atirar no teu saco até tuas bolas virarem creme, só pra ti aprender a ficar passando trote no interfone dos outros, seu vagabundo de merda!

- Mas, senhor...

- Fica aí se tu é homem que eu já vou te mostrar o que se deve fazer com cara safado!

Ele desliga o interfone, praticamente soldando o aparelho no gancho.

- Puta que pariu! Vão se foder! Filho duma cadela rameira!

Indignado, o homem resmunga mais uma porção de palavrões e retorna ao seu confortável posto, afundando o traseiro no buraco soterrado de restos de pipoca na poltrona, sentindo-se louco da vida por não ter visto o que quer que tenha passado na TV nos últimos cinco minutos.

A televisão mostra agora um compilado de cenas esportivas do final de semana, mas a mente do homem está em outro lugar. Ele não conseguia parar de pensar que devia mesmo ter descido até a portaria do prédio só pra arrancar o couro daquele filho da mãe que não tinha nada melhor pra fazer na vida.

Roxy Music e Pavarotti. Ainda se fosse algo realmente importante, como aquela furadeira que ele tinha emprestado para aquele vizinho safado que resolveu se mudar sabe lá pra onde antes de devolvê-la...

- Por que carinhas desse tipo não morrem! O próximo viado que vier me passar trote vai ver só! Vou lá embaixo comer o rab...

Há uma explosão e a janela inteira, logo atrás da TV, voa pra cima da própria TV, da poltrona e do homem de bermuda, que berra e se encolhe, tentando se proteger da chuva de estilhaços de vidro.

Segundos depois, atrás dele, a porta do apartamento tem um destino semelhante, sendo praticamente esmigalhada por um violento impacto vindo de fora, tiras e lascas de madeira, parafusos e batentes de metal voando pra todos os lados em uma barulheira ensurdecedora.

Homens com trajes negros, máscaras e viseiras, carregando armas de grosso calibre invadem a pequena sala de estar.

- Perímetro assegurado. Iniciem a busca aos materiais - um deles grita, fazendo gestos de comando com uma das mãos.

Os paramilitares começam a vasculhar o lugar, puxando e quebrando gavetas, puxando e quebrando portinholas, puxando e quebrando compartimentos, e puxando e quebrando tudo o que havia no interior das gavetas, portinholas e compartimentos.

O homem do sofá olha tudo com olhos enormes e lívidos de pavor, sentindo uma baba quente e desagradável escorrer pela sua boca e outra baba ainda mais quente e ainda mais desagradável grudando o tecido de sua bermuda ao da cueca.

- Encontrei um dos objetos, senhor - um dos agentes de rosto coberto surge do corredor e entrega um compact disc na mão do homem que parecia estar coordenando a operação. Na capa, a foto de um senhor de meia idade, sorridente, parcialmente calvo, com um bigode e uma barba escura que se uniam ao cabelo que ainda lhe restava. Pavarotti & Friends escrito logo acima da foto. Marcas de dedos de épocas remotas rebocam o acrílico da embalagem. Uma extensa assinatura feita a caneta esferográfica e muito mais semelhante a um amontoado de arame farpado meio desenrolado do que ao nome ‘Nilson Evimar Tissan’ rasga a base da capa do CD.

O chefe dos soldados puxa um papel impresso e confere, e compara, e, após ter aberto o invólucro e verificado que o disco plástico em seu interior se encontrava em bom estado, anota algo no papel com uma caneta vermelha de ponta grossa, repetindo em seguida justamente o que pareceu ter anotado.

- CD Pavarotti and Friends encontrado e reintegrado.

O quebra-quebra continua. Lâmpadas são quebradas. Móveis são quebrados. A TV que já estava quebrada e cheirava a queimado é ainda mais quebrada. Poeira sobe para os ares enquanto os homens de uniforme vasculham e demolem com tudo.

- Objetos restantes encontrados, senhor - outro soldado vem correndo do quarto, trazendo três LPs, que são prontamente entregues ao seu comandante, que os confere, compara e verifica, de modo semelhante ao que fez com o CD.

- LPs conferidos e reintegrados. Procedam à retirada.

Os soldados de preto batem continência e marcham porta afora. Um deles fica em posição de sentido ao lado da porta, arma em mãos, como se para manter a segurança do local.

O comandante de máscara e grandes óculos permanece por mais algum tempo anotando mais coisas em alguns outros papeis e então estende três formulários para o dono do apartamento que sua frio, encolhido dentro de si mesmo e de sua poltrona, que por alguma sorte ainda está inteira.

- Preciso que o senhor assine aqui - diz o soldado, a voz vindo pela metade por trás do capuz. - Este é o guia com sua autorização para reintegração de posse do material, onde encontra-se o atestado de justificativa de conduta armada e a autorização para uso de força. É o mais importante. Coloque a data, local e seu nome por extenso, por favor.

Absolutamente apavorado, o homem de bermuda assina, coloca a data, local e nome por extenso tão imediatamente quanto suas mãos trêmulas permitem.

- Mais essas duas vias... É uma droga essa burocracia, eu sei... Ótimo. Obrigado. Estes papéis ficam com o senhor. São suas vias do contrato, recibo de efetivação da devolução, mandados e papelada legal. Vou deixar um cartão da LLR junto, caso o senhor precise recuperar coisas que emprestou pra alguém, sabe como é. - o militar ri e dá um tapinha no ombro do homem seminu, que sente a tonelada de pipoca e refrigerante em seu estômago querendo voltar caminho acima. - Sempre acontece. A gente empresta uma coisa pra um amigo e o desgraçado some e nunca mais devolve. Aí a gente tem que tomar providências pra recuperar nossas coisas... e é isso que nossa empresa faz.

O homem de bermuda fica olhando para os papéis em sua mão enquanto os soldados mascarados se retiram do que restava de seu apartamento.

- A LLR agradece sua colaboração - despede-se o líder dos soldados, a touca ninja escondendo um sorriso - ou não. - Tenha uma boa noite.

No cartão estava escrito...

LETHAL LOAN RETRIEVER

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... além de outras informações, um endereço e dois números de telefone.

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Cinco horas depois...

“Alô? É da LLR?... Meu nome é Michel Granville... Isso... Emprestei uma furadeira pra um vizinho meu e gostaria de recuperá-la... Exato... Não, não. Faz uns oito anos. Acho que foi em 2007 ou 2006... Não, o cara não mora mais aqui e não sei onde ele foi morar... Ah, vocês procuram pela pessoa em qualquer lugar do país? Interessante. Gostaria de saber como funciona o seu serviço...”