Criatura

É curioso como certas coisas que nos acontecem são totalmente inesperadas e diferentes de tudo o que já se imaginou ou pensou no mundo, e como isso nos afeta. Seja para o bem ou para o mal, quando isso ocorre, é sempre bom nos mantermos alertas e abertos aos ensinamentos que possam trazer. A singularidade desses eventos é uma oportunidade única para o indivíduo, e ele pode escolher o que extrair daí, a partir do que ele crê e do que ele é feito.

Ou talvez não extraia nada, mas aí é uma perda muito grande.

Bom, nem que seja para uma boa história estas experiências devem servir, como a que aconteceu comigo e vou lhe contar agora. Espero que esteja confortável e, somado a este que vos fala, possa refletir e aprender algo mais que lhe seja útil na vida. Você decide. Vamos lá.

Não sei se você sabe, mas vivo numa aldeia isolada e pequena, detrás dos contrafortes das montanhas voltadas ao mar. É um lugar elegante e bem protegido, o que nos confere uma vida pacata e sossegada, porém sem muito contato com quem é de fora. Mas, acho que todos nós de lá gostamos disso.

Esse cotidiano, como você deve imaginar, é bem previsível, sem muitas novidades ou surpresas marcantes. O sujeito vive do mar e do que as montanhas lhe oferecem, e só. Todos os rostos e famílias são conhecidos, e tudo é muito próximo, bem-arranjado e familiar.

Mas, como lhe disse no começo, existem as coisas inesperadas. Seja lá o que forem, uma ação divina ou um simples golpe do acaso, elas acontecem; e marcam. Ainda mais num lugar como esse em que vivo.

Num dia qualquer, estava eu a caçar macacos nas montanhas, quando senti uma estranha coceira na lateral do corpo. Na hora eu não dei muita atenção, mas esta coceira foi crescendo até se tornar muito incômoda. Sugeri, então, a mim mesmo, que a caçada daquele dia estava encerrada, e me recolhi à minha morada.

No dia seguinte, a coceira havia cessado, porém havia deixado um calombo estranho. Fui à casa do mestre da vila e ele me disse que aguardasse por mais algum sintoma incomum para que, assim, pudéssemos saber o que fazer. E segui o seu conselho.

Os dias foram passando e o calombo foi aumentando, mas assumindo formas estranhas… Me olhava e me parecia que… Alguém estava surgindo ali.

Isso mesmo! Alguém. Parecia uma cabeça emergindo de mim, com inclusive alguns cabelos já nascendo.

Me assustei e voltei ao mestre; ele me examinou e disse-me que não havia nada a fazer naquele momento, e que eu deveria ter paciência, observar a evolução do quadro e não me preocupar, pois eu estava bem de saúde.

Assim o fiz. E minha previsão estava correta: um ser humanoide estava nascendo ali, para meu espanto. Como ele crescesse, não havia mais como eu esconder a novidade da pequena vila, que caiu em assombro ao ficarem sabendo de algo tão inusitado.

Confesso que não tinha mais sossego. Pessoas acorriam a mim, admiradas, perplexas, devotas, revoltadas. Diversas eram as reações. Cultivando a paciência que me fora recomendada pelo mestre, fui aprendendo a lidar com a situação, por incrível que pareça.

Não demorou muito e o ser, já bastante desenvolvido, despertou. Eu, que já estava me acostumando, me espantei de novo. Como aquilo podia ter vida? Mais uma vez acorri ao mestre, que se mostrou maravilhado com a situação. Ele me disse que, já que eu não podia evitar aquilo, me abrisse para extrair da experiência o melhor possível. E nada melhor do que cuidar daquilo que nascia em mim, e dependia de mim.

As palavras do mestre eram muito ponderadas e acertadas, e foram me auxiliando a manejar tão tétrica situação. Principiei a cuidar do ser, a limpá-lo, alimentá-lo, acariciá-lo e lhe dar atenção como a um filho; e ele foi demonstrando consciência independente da minha, e a responder ao meu afeto. Como eu nunca tivera de quem cuidar, aquela situação nova foi despertando em mim sentimentos de carinho e afeição pela criatura, e fui a amando cada vez mais e mais. Aquilo que parecia repugnante e feio foi transformando-se – pelo menos sob meu olhar paternal – a coisa mais bela e terna que eu jamais vira antes.

Eu saía para caminhar ou trabalhar e o ser me fazia intensa companhia. Ele não falava, mas nós nos comunicávamos da nossa forma intuitiva. Senti, ao seu lado – literalmente – um prazer único de viver. Eu, finalmente, me sentia útil, responsável e amado.

Mas, uma surpresa puxa outra. Se atente bem.

Passados alguns anos, com o ser já no máximo de seu desenvolvimento, tudo corria bem como sempre. Porém, numa manhã, acordei com uma dor lancinante na barriga. Despertei desesperado, achando que algo de mal pudesse ter acontecido ao meu insólito filho, mas o contrário é o que havia ocorrido: ele estava com minha faca de trabalho na mão (provavelmente tirou de meus pertences ao lado da cama), enterrando-a em minha barriga.

Assustado com o que eu incredulamente via, levantei-me e arremessei a faca longe. Eu vertia muito sangue, e corri rapidamente à casa do mestre para pedir ajuda.

Ele me atendeu e me deu o socorro no tempo e na forma devidos, e nada de mais grave me aconteceu, porém eu tive de permanecer em repouso por alguns dias, até a completa recuperação.

Camarada, imagine você ter de passar vinte e quatro horas de seu dia ao lado do traidor que você tratava como filho. Pois bem, duvido que se sentiria bem. E muito menos eu. Eu estava decepcionado, de coração partido, cheio de ódio, e ainda tinha de carregá-lo ao meu lado. Eu evitava olhá-lo ou ter qualquer contato com ele e, naquele leito da casa do mestre, fui desenvolvendo uma amarga repulsa na mesma proporção do amor que eu sentia por aquela criaturinha.

Após purgar esta tortura emocional e física, pude voltar curado à minha casa.

Por dias chorei desconsolado, isolado, depressivo, mas não tardou muito e logo tratei de recuperar as rédeas da situação, e tomei uma decisão resoluta e muito difícil: eu ia arrancar aquela criatura de mim.

Em segredo, trancafiado em minha casa, peguei a minha mesma faca de trabalho com a qual quase fui assassinado, e a afiei bem. Coloquei um pano na boca para aguentar a dor e principiei a dolorosa extração daquele pequeno traidor intruso em meu corpo. Ele pouco esboçava alguma reação de dor, então eu acho que aquilo doía muito mais em mim do que nele – E que dor!

Aquilo não me doía apenas fisicamente por arrancar um pedaço de mim, mas também por arrancar forçosamente uma pessoinha que por anos era tudo para mim. Eu chorava pela dor física e pela dor emocional, mas não hesitei em momento algum, pois eu sabia que aquilo precisava ser feito. Era uma relação acabada, e não havia mais como aquilo seguir daquela forma… Talvez eu estivesse fazendo o que já devia ter feito há muito tempo, no início de tudo.

Após um dia inteiro de aflição e sofrimento, consegui retirar as últimas camadas de pele que me ligavam àquilo, que caiu no chão, sobre muito sangue do meu ferimento. Exausto, desmaiei ao final.

Não sei como, mas fui socorrido, e acordei somente após alguns dias, na casa do mestre, com ele sentado à cabeceira do leito, zelando por mim. A primeira reação que consegui sentir ao descobrir que estava salvo da morte e livre do meu inevitável vizinho de corpo foi um paradoxal misto de riso e choro. Eu estava feliz por estar vivo, mas triste pela decepção sofrida, e pelo subsequente ato que tive de cometer.

O mestre me informou que viu um filete de sangue escorrendo sob a porta de entrada de minha casa, e arrombou a porta para me tirar de lá. Mais um pouco, e eu não estaria aqui para contar minha história. Fiquei desacordado por três dias, mas agora eu estava fora de perigo, embora meus ferimentos fossem grandes.

Expliquei-lhe tudo o que acontecera entre eu e a criatura, e ele me ouviu com a mesma paciência e temperança de sempre. Ao final, ele disse-me que minha atitude, embora perigosa, fora inevitável, vista a impossibilidade da situação perdurar.

Evitei perguntar sobre o ser que extraíra de mim, e o mestre também não tocou no assunto.

Permaneci mais alguns dias e noites sob seus cuidados, e foi muito difícil de lidar com aquilo. Como era uma situação única, não havia em que espelhá-la, o que me encheu de confusão. Sentia saudades ao mesmo passo em que sentia ódio pelo ser.

No dia em que recebi alta, estava eu me arrumando para voltar à minha casa quando ouvi alguns sons de movimentação no quarto ao lado. Como o mestre não estava em casa e eu julgava estar sozinho, tratei de verificar o que estava acontecendo. Ao adentrar a porta do outro cômodo, me deparei com a criatura presa em uma gaiola, totalmente transtornada. Assim que ela me viu, ficou paralisada, me encarando com um olhar misterioso. Não sabia se era um olhar de ódio ou de resignação… Não parecia sentir por inteiro nem uma coisa, nem outra… Assim como eu.

Mas, neste momento, me veio um terceiro sentimento, totalmente inesperado: ao ver aquela criatura, pequena, estranha e irreconhecível, senti pena. Pena porque ela não era como eu, e não tinha a mínima condição de sê-lo, nunca. Era diferente de tudo, e não possuía humanidade. E o sentimento de pena me conduziu a esta reflexão de distanciamento que me convenceu de que, como éramos muito diferentes, sendo ela algo em si mesmo inferior, seja pela irreflexão de sua atitude de querer me matar ou pela sua condição não humana, não havia porquê eu me sentir mal por ela. Pois, ao me sentir assim, eu me igualava a ela, rebaixando-me ou elevando-a, o que não era um exercício digno de mim, entende?

Como você bem sabe, a velocidade de nossa mente é absurda, e todo este exercício reflexivo tão denso me ocorreu num lampejo apenas ao fitar nos olhos aquilo que me escravizava, e isso, para mim, foi um romper de correntes. Subitamente, me senti livre.

A criatura se encolhia na gaiola, provavelmente esperando minha vingança; porém me limitei a fechar a porta e voltar a arrumar minhas coisas. Logo depois o mestre retornou e agradeci a ele pelo cuidado e atenção, e lhe informei que precisava de um tempo de férias longe da vila para espairecer sobre tudo o que me ocorrera, e nada mais lhe disse.

Mas aquele velho é esperto… Vi que ele sabia que a minha mudança de estado de espírito não veio do nada, mas também não me perguntou como. Apenas de meu um forte abraço e desejou-me boa viagem. Depois disso, nunca mais vi a tal criatura, e não sei se ela continua na casa do mestre, pois não entrei mais lá. Mas imagino que ela esteja melhor do que mereceria, pois o velho é muito bondoso e sábio.

Quanto a mim, depois daquele dia em que tive a alta, ainda me peguei pensando a respeito, mas o último encontro que eu tive com a criatura, já apartada de mim, me fez muito bem. Sabia que o que eu havia feito era o que realmente havia de ser, e não me culpei por nada. Venho tocando minha vida desde então, e estou muito bem, obrigado. Mas a cicatriz que tenho ao meu lado às vezes ainda me dói, porém isto eu tiro de letra.

Só me preocupo mesmo quando ela coça.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 14/12/2015
Código do texto: T5479361
Classificação de conteúdo: seguro