CARNAVAL
É tudo uma questão do que era e do que virou. Já vimos, com Nelson Rodrigues, que quando a notícia é maior do que a verdade muda-se a realidade. Pedro acreditava nisso. Formou uma sociedade secreta, com propósitos secretos, é claro. Nada de beijos, muito menos no asfalto. Os membros eram “ultrahipersecretos” e ninguém sabia da adesão ou da existência de outrem. A notícia foi se espalhando, entranhando nos cantos e nas trevas, como convém a este tipo de coisa. De forma lenta e gradual, para não esquecer dos Generais que queriam “tirar o seu da reta” e entrar para a História com a lama longe do pescoço, ao menos. Pedro espalhava boatos, boatos de adesão, boatos de suicídio, boatos de existência e até boatos de felicidade. Espalhar era o de menos, interpretar é que realmente fazia o furor. Interpretar uma adesão, um suicídio ou uma existência era fácil e lucrativo. Trazia enormes vantagens para o adesista ou o suicida. Apareciam oportunidades, empregos e estátuas. Nasciam milionários e heróis. Simples. A existência trazia aquela certeza da paz, da calma e do aconchego. A tranqüilidade de se saber a existência, de se saber a presença. Mesmo quando não existia. Muito bom. Quase uma religião. No interpretar a felicidade, no entanto, Pedro se equivocou, espalhando um terror inominável e indescritível. Um pavor imenso tomou conta de todos, pela súbita consciência de não estarem felizes, sequer satisfeitos, nunca terem sido e a duvida de se algum dia viriam a ser. Complexo. Satisfação e felicidade, vocábulos distintos, mas conexos. Jamais se viu um estômago que, roncando, permitisse ao seu portador declarar a felicidade em alguma frase que fosse. Tanto uma, como a outra, dotadas de condição etérea. A satisfação e a felicidade, não a castidade.
“Mas o que é isso?”... ”O quê, castidade?”... ”Condição etérea!”...”Ah... Bom... éter é ter éter na mente, eternamente... acho...escutei faz tempo”
“Piorou... pega o dicionário...ali, ó...”, apontando para o edifício da Biblioteca Municipal, do outro lado da praça. Motivo para um café, uma caminhada e um cigarro. Não necessariamente nessa ordem. Praça central, calma, com chafariz, Igreja e vendedor de pipoca. De resto, deserta. Os infelizes se recusavam a sair, ir à praça, então, nem pensar. Uma vez superada a burocracia local, aptos a fazerem uma consulta, retirando o exemplar da prateleira e servindo-se de uma das mesas existentes, foram surpreendidos pela informação de que o único exemplar de dicionário, disponível no acervo, estava fora. “Fora?”....”Emprestado”. Tiveram de se socorrer do exemplar de propriedade de um aluno, ali presente com seu dicionário, por motivos outros, absolutamente desconhecidos, embora possam ter sido nobres e importantes, até. Tratava-se, nada mais nada menos, do “Dicionário Escolar da Língua Portuguêsa”, sexta edição, 1969, editado pela Fundação Nacional de Material Escolar do Ministério da Educação e Cultura. Altamente oficial. Naquele tempo era assim, de lá pra cá mudaram até regras gramaticais e ortográficas, imaginem pois, os conceitos, os pensamentos dominantes e as razões advindas. Como acreditar na conceituação e sinonímia que viesse a ser encontrada nas páginas desta obra. “Não, não e não!”...”O quê?”...”Não aceito nada do que está conceituado ai nesse livro, devolve para o menino e vamos procurar uma livraria.” “Mas não custa ler o que está escrito...”.... “Está escrito que “tenhamos fé neste Brasil que patriòticamente desejamos construir! Rio de Janeiro, abril de 1969”, eu vi, não, não e não...” ... “Só porque mudou a ortografia .... ah, eu vou ler.” E leu que éter pode ser “fluído hipotético, pode ser volátil, sulfúrico, ter formula ou até ser o espaço celeste.” Leu, também, que etéreo era “relativo ao éter, mas que podia ser elevado, sublime, puro e celeste” ... “Viu!? Condição etérea, condição celestial!” ... “Por isso proibiram, ta vendo? ... celestial não podia...” “Cheirar Lança...” “Agora também não pode...”