que precisa ser escrito

À distância, refestelando-se comodamente no conforto do descompromisso, ele me encara. É o rascunho que não concluí, o projeto que não iniciei. O texto que não fora escrito.

Ele tem o olhar maroto e provocativo. Parece gostar de nossa relação conturbada. Ao me encarar dessa forma insistente, demonstra sem pudor um gozo ao me ver tremer de medo, fazendo da minha insegurança um alimento viciante.

Enfim se levanta e vem em minha direção.

- Acha que vai dormir hoje? - ele interpela com tom debochado.

- Não sei - respondo sem ânimo. - Você que vai me dizer.

- Tu sabes que nunca serei bom o bastante pra ti, né? - ele pergunta, enquanto sorri. Definitivamente não era dos questionamentos que carregam receio: era uma incitação. - Não serei nenhum novo tratado de Hemingway, Hunter Thompson ou outro "cabra" qualquer que povoa teus delírios de escritor.

- Eu sei.

- Teus amigos lidam de maneira tão mais eficiente com meus semelhantes - falou fechando os olhos, em mais uma tentativa (muito bem-sucedida) de me provocar. - Flertam sem medo com as palavras, produzem, escrevem, finalizam... Deve ser angustiante ser tão incapaz assim, imagino.

- É.

- Vai insistir comigo por quê? -

- Porque precisa ser escrito - respondi resignado. - É a certeza que tenho.

Ele pareceu subitamente satisfeito.

- Então puxa uma cadeira que a noite vai ser longa - disse, enfim caminhando em minha direção.

Sallez
Enviado por Sallez em 11/11/2015
Reeditado em 14/12/2015
Código do texto: T5444962
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