Um mal particular.

As pessoas leem coisas desmentidas, como se fizessem parte de uma irmandade. Existem os trechos absurdos, sintéticos, que alguns categorizam como gênios. Os trechos, eles são classificados como pessoas. Pedaços de vinganças e emoções. Descobrem que o toque de um escritor é a analogia menos importante.

Elevo a capacidade violenta, enquanto pedem que eu segure suas próximas histórias; “reservo, guardo, sim, senhora...”. O dia está quente, e a senhora da bebida/limonada adocicada perambula atrás das estantes de filosofia novamente. Deve ser autodidata, pois sua fisionomia é como um asno separado de seu mártir.

A filosofia faz sentido em alguns tipos de amor, como se fosse a contagem de passos girando ao redor dos infernos. “A grisalha” não passa de um demônio atraente. Agora, está a 15 passos de mim. Quer perguntar-me algo aparentemente inteligente, como uma dívida. Quer me condenar a admirá-la.

Aproxima-se, com um livro de Dante Convento – “A iluminura dos séculos” (já o li). Na minha frente, abre-o em uma página diversa e parece ler o trecho:

“É preciso governar a literatura, mas não do modo certo. De tão bela, esconde-se, tão híbrida como o álcool; venero o álcool...”.

Não aguardo a simpatia das pessoas, muito menos a minha. Porém, sou obrigado a caçar distrações para não decapitar as correntes da ignorância ambiciosa desse ponto. Apelarei ao padrão.

- Em que posso ajudá-la? (Mesmo que sua direção fosse narcisista, não havia empolgação.)

Ela cerrou os lábios. Aparentemente sem fôlego, desdenhou:

- O que achou deste trecho?

Francamente, estou cansado de asneiras, mas sou pago pra isso.

- Se a senhora gostou, acredito que ninguém ousará ponderar sua opinião...

Ela tirou os óculos e balançou a cabeça negativamente. Como se eu estivesse errado, observou-me com reprovação.

- Custa 60 reais, senhora...

- Não perguntei o preço; quero uma crítica.

É o asno em sua origem.

- É um bom livro...

O recomendado é não influenciar o leitor; o treinamento para funcionários de livrarias é corriqueiro e ao mesmo tempo, rígido. Não se pode mesclar pessoalidades com controvérsias e negatividades; deve-se esconder as diligências e autonomias. Somos obrigados a demonstrar um gosto eclético, seja qual for a situação.

- Você já o leu? – perguntou ela

- Sim, já o li...

Não menti. Embora soubesse a categoria de Dante Convento. Um padre desfigurado, que pratica o ateísmo desde a morte de sua crença no Messias. Há anos não era religioso, mas se acha idiotamente “iluminado”. Escreve livros voltados à arte de não julgar a si mesmo, quando se está ébrio e podre. Agrada a muitos; normalmente, agrada os problemáticos.

- É um livro simples?

“Sim, é uma encadernação para retardados” – pensei.

- Se a senhora gostar de exibicionismo pseudointelectual, é prato cheio.

Acabava de ultrapassar uma das regras - mas pensando na coerência futura, complementei:

- Não gosto, mas o trecho faz parte de uma analogia interessante.

Ela sorriu pateticamente, como um adolescente descobrindo The Cure aos dezessete.

A ficção não deveria ser algo possível ou real. Nada é. As ficções mais brandas costumam mudar a vida de algumas pessoas. Falcões mágicos, amores platônicos e abandonos. Meus dias cinzas batizam os livros mais ruins, de acordo com minha técnica desconfortável. Meu salário é bem gasto com coisas raras e dormentes; a não ser que você seja doente, seria capaz de compreender alguma de minhas análises mais profundas.

- Hum.

Aparenta ter mais de 70 anos. Deve ser aposentada. É calva e possui a voz amargurada.

- Pensarei a respeito dele. Reserve-o; talvez eu volte aqui pra comprá-lo.

A visão de uma sociedade testada: vivemos esperando os idosos irem e virem. São eles as maiores perdas; principalmente os pais e as mães. Como não possui laço algum comigo, chega a ser agridoce o gosto do homicídio entre o cérebro insignificante e antigo.

- Sim senhora...

Manter as reticências disfarça e aparenta certa simpatia; há algo de agradável - às demais audições.

Ela caminhava arrastando os pés. Tipicamente. Devia ser viúva.

Suas costas revelavam um xale coberto de poeira. Estava indo embora.

- Senhora...?

Ela voltou-se novamente, como se fosse aprender algo novo. Não descobriu o tamanho do tempo que subestimei a farsa.

- Cá entre nós, Dante Convento jamais disse tamanha tolice. Sugiro que peça aprovação de sua literatura, transmitindo-a direto de sua própria autoria. Não utilize nomes para testar a qualidade de seus pensamentos.

Ela retornou os olhos ao chão. Algo ecoou atrás das estantes, e uma lágrima descia o seu rosto. Deve ter tido o sonho de ser escritora por toda a vida. E não se servia de influências.

Durante sua partida rápida, notei que as opções de uma sátira do ocorrido seriam duas: ou o amor não era rompido, ou sua prática era nula dentro de minha garganta.

Em outros momentos eu teria vomitado. Porém, apenas joguei o exemplar no caixote de “livros reservados” e imaginei Dante Convento no fundo de um copo d’água. Até os escritores ruins afogam.

O desgosto não passa de um absoluto recorde de insignificância – e aqui estou eu, pronto para vendê-los.

Indiferença. Temos mais um cliente adiante.

Lainni de Paula
Enviado por Lainni de Paula em 29/10/2015
Reeditado em 30/10/2015
Código do texto: T5431514
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